Autor(es): Mino Carta
Carta Capital - 13/04/2010
Philip pullman, escritor inglês dos bons, escreveu um livro intitulado The Good Man Jesus and the Scoundrel Christ, O Bom Jesus e o Pilantra Cristo. Há quem diga que se trata de obra blasfema. Em compensação a crítica Charlotte Higgins do The Guardian define o livro como “fascinante, de prosa próxima daquela dos irmãos Grimm”, enquanto o arcebispo da Canterbury, Rowan Williams, primaz anglicano, afirma: “Texto emocionante, marcado por uma genuína espiritualidade”.
O título expõe o propósito: diferenciar Jesus, “verdadeiro revolucionário”, do Cristo de quem a Igreja se apossou, depois de Paulo de Tarso ter inventado um salvador filho de Deus. Paulo, militar como Ignacio de Loyola, general do exército da Contrarreforma. Clara está a revolução de Jesus, pregador da igualdade em um mundo profundamente desigual. Os outros dois eram talhados para a guerra.
Neste momento, atingida pelas consequências do escândalo dos padres pedófilos, a Igreja Romana, por meio de purpurados porta-vozes, declara-se alvo de uma campanha política, ousada a ponto de pretender desestabilizá-la. Se as críticas têm conteúdo político, nada mais justo. Pois a Igreja é, no mínimo desde o momento em que se tornou a religião oficial do Império Romano no começo do IV século depois de Cristo, um poder eminentemente político, e temporal desde o VIII século, quando começou a se expandir territorialmente.
Poder totalitário, feroz na perseguição de ideias discordantes, na condenação da “heresia”, na estratégia do genocídio, original igual ao pecado, com os autos de fé na Espanha e em Portugal, e amiúde devasso em turvos momentos de libertinagem desbragada. E sempre tragicamente anacrônico, como se seus dogmas, aceitáveis somente à luz da fé, representassem a realidade conquistada, com muito risco e dor, pela razão.
As mudanças atuais em relação ao obscurantismo de séculos atrás são sobretudo formais. A irredutível oposição eclesiástica ao progresso científico, a intransigência quanto a comportamentos de vida civilizada e democrática ganharam feições novas só na aparência. Escreve Timothy Shriver, católico praticante e editorialista do Washington Post: “Se esta Igreja, com sua atual hierarquia, com seu papa e seus bispos, não saberá confessar a Verdade; se continuará a esconder suas culpas como Nixon no escândalo Watergate; se provar ser mais devotada ao poder do que a Deus, então nós, católicos, teremos de procurar alhures um guia espiritual”.
Shriver é filho de Eunice Kennedy, irmã de John e fundadora do Special Olimpics, a paraolimpíada da qual hoje ele é presidente. E escreve: “Nós temos fé em Deus, e não em uma hierarquia que perdeu a credibilidade e parece mais interessada em conservar o poder do que viver conforme o espírito dos Evangelhos”. Do lado oposto manifesta-se, entre outros, o cardeal Angelo Sodano, 83 anos, que até 2006 foi secretário de Estado do Vaticano. Segundo Sodano, os atuais “ataques” a Bento XVI recordam aqueles desferidos contra Pio XII, que silenciou diante do shoah e que Ratzinger proclamou “venerável”, a caminho da santidade, no ano passado. Ou contra Paulo VI, que na encíclica Humane Vitae excomungou a camisinha.
Observe-se que os papas nem sempre entendem-se entre si. Papa João XXIII, de saudosa memória, via em padre Pio de Pietralcina um impostor. João Paulo II fez dele um santo. Quanto a Pio XII, considerava o nazismo um baluarte contra o comunismo. Política? Política. A ex-presidente das comunidades judias da Itália, Tullia Zevi, do alto dos seus 91 anos, pondera, com a devida ironia: “Enfim, quem decide quem é santo?”
“Por que o papa – pergunta Zevi – não cuida de perceber que o celibato é contra a natureza?” Mas é do conhecimento até do mundo mineral que o celibato correspondeu a uma injunção econômica: a ideia da família implica graus de independência, financeira inclusive, inaceitáveis para os donos do poder eclesiástico, que querem todas as rédeas em suas mãos.
De todo modo, o escândalo da pedofilia, antigo e deliberadamente ignorado, é brasa debaixo das cinzas a faiscar até menos do que tantos outros. Por exemplo, as ligações do banco vaticano com o crime organizado, a envolver lavagem de dinheiro e até assassínios. Ou as insuportáveis interferências na vida política de vários países, a começar por Itália e Espanha, onde o Estado se diz laico, mas os governos sofrem as pressões de batina e frequentemente se ajoelham, obedientes e compungidos.
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