sexta-feira, 31 de agosto de 2012

"Só punindo os torturadores a tortura acaba"

Autor(es): Ângela Mendes de Almeida
Isto é - 27/08/2012



Ex-mulher do jornalista Luiz Eduardo Merlino, morto pela ditadura em 1971, a cientista social comemora as primeiras decisões judiciais contra o major Ustra, e diz que esse tipo de violência ainda existe no Brasil

por Rachel Costa

Julgar e condenar os agentes do Estado como responsáveis pela violência cometida durante a ditadura militar é um objetivo antigo de sobreviventes e familiares de vítimas do regime. Por décadas, porém, esse foi um sonho distante. A realidade, agora, parece mudar após duas decisões recentes da Justiça relativas ao major Brilhante Ustra, oficial que esteve à frente do Destacamento de Operações de Informações, o DOI-Codi, da ditadura, entre 1970 e 1974, e que se tornou conhecido pela frieza e crueldade com que comandava sessões de tortura. Em caso inédito no Brasil, o oficial foi condenado em primeira instância a indenizar os familiares do jornalista Luiz Eduardo Merlino por sua morte em 1971. Também foi mantida, em segunda instância, pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, a condenação do major pela tortura da família Teles, ocorrida em 1972. À frente da ação sobre o caso Merlino está sua ex-companheira e ex-militante do Partido Operário Comunista (POC), a cientista social Ângela Mendes de Almeida, 74 anos. A indenização é estimada em R$ 100 mil. "Não queremos esse dinheiro. Queremos que outros torturadores vejam que podem vir a pagar pelos crimes que cometeram", afirma.

Istoé -Recentemente, em duas ações diferentes, a Justiça responsabilizou o major Ustra por abusos cometidos durante a ditadura. Por que é importante que haja a responsabilização pessoal e não do Estado?

Ângela Mendes de Almeida - Na maior parte dos casos, a opção por mover ações tendo como réu o Estado ocorreu porque não se conhecia o nome dos torturadores. Poucos estão identificados e um desses poucos é o coronel Brilhante Ustra, que era o comandante do DOI-Codi à época e não escondia isso de ninguém.

Istoé -Na ação de vocês, pela primeira vez um agente da ditadura é condenado a indenizar familiares de mortos pelo regime. Como foi a decisão de entrar com o processo?

Ângela Mendes de Almeida - Para nós, era terrível não poder fazer nada. Parecia que já se havia explicado a morte dele e não mais se falaria sobre isso. Decidimos entrar com a ação em 2007, tomando como exemplo o processo da família Teles, também contra o Ustra, e que foi agora referendado pelo TJ-SP. No caso deles, o casal, a cunhada e as crianças foram sequestrados, levados para o DOI-Codi e barbaramente torturados, em 1972, um ano após a morte do Merlino. Tentamos fazer o mesmo, mover uma ação declaratória (na qual seria declarada a responsabilidade dele, porém não haveria indenização), mas, diferentemente da família Teles, não deu certo conosco.

Istoé -Por que não deu certo com vocês?

Ângela Mendes de Almeida - Em 2008, os advogados do coronel Ustra propuseram ao Tribunal de Justiça um embargo à ação, alegando que o coronel estava coberto pela Lei da Anistia e que eu não tinha direito de entrar com o processo, pois não era formalmente casada com o Merlino. Esse embargo foi julgado e decidiu-se pela extinção do processo.

Istoé -Foi a partir daí que vocês decidiram pela ação indenizatória?

Ângela Mendes de Almeida - Sim. Nesse julgamento, os desembargadores sugeriram, não formalmente, que seria o caso de uma ação por danos morais. Sempre vacilamos em mover uma ação desse tipo porque não temos interesse no dinheiro. Mas não tínhamos alternativa. No Brasil, há uma interpretação da Lei da Anistia – e digo interpretação porque isso não aparece na própria lei – que impede que se movam processos criminais contra os torturadores. Por isso os processos que temos, como nos casos do Vladmir Herzog e do Manoel Fiel Filho, são processos na área cível, não na área criminal. Ganhamos a ação em primeira instância. O coronel, porém, recorreu e agora aguardamos o julgamento em segunda instância, sem data marcada.

Istoé -A decisão do TJ-SP sobre a família Teles dá mais segurança de que a condenação de Ustra no caso Merlino também será mantida?

Ângela Mendes de Almeida - No Poder Judiciário não existe 100% de certeza, mas a condenação em segunda instância no caso da família Teles é, certamente, um passo importante para o nosso processo.

Istoé -O advogado do coronel alegou, no caso Teles, que o correto seria a situação ser avaliada pela Comissão da Verdade. Qual a opinião da sra. sobre essa estratégia?

Ângela Mendes de Almeida - Isso é uma bobagem que não tem tamanho. Se a Comissão da Verdade investigar os casos em que o Ustra foi um ator preponderante, isso só vai piorar a situação dele. É uma coisa sem nexo. Não é o Ustra quem vai se valer dos resultados da comissão.

Istoé -Só a ação cível é pouco?

Ângela Mendes de Almeida - Sim. Nós gostaríamos que esses torturadores fossem identificados e julgados pelos crimes de tortura, assassinato e desaparecimento de corpos. Ninguém está pedindo para torturar os torturadores. Nós queremos que os casos sejam investigados e sejam aplicadas a eles as leis que se aplicam a todas as pessoas que cometem esses crimes.

Istoé -A sra. conhece outras famílias que estão tentando mover ações contra torturadores do regime militar?

Ângela Mendes de Almeida - Famílias, se existem, a gente não conhece, mas há algumas iniciativas do Ministério Público.

Istoé -Como a família soube da morte de Merlino?

Ângela Mendes de Almeida - Tudo indicava que ele seria mais um desaparecido do regime militar. No atestado de óbito, diz-se que ele havia sido levado para uma reconstituição de cena no Rio Grande do Sul, fugido e se suicidado sob um caminhão na BR-116, na altura de Jacupiranga (SP). A família não foi avisada de nada. Por sorte, o Adalberto, marido da Regina, irmã do Merlino, era delegado de polícia e recebeu um telefonema avisando sobre a morte. A família, que vivia em Santos, veio então a São Paulo e foi ao Instituto Médico Legal. Lá, o diretor disse que não havia nenhum corpo com esse nome. Por ser delegado, o Adalberto conseguiu entrar pelos fundos e foi abrindo porta por porta das geladeiras até que em uma delas ele encontrou o cadáver com sinais evidentes de tortura. Só então o corpo foi entregue à família, em um caixão lacrado. Adalberto foi o único familiar a ver o Merlino morto.

Istoé -Como vocês descobriram o que de fato ocorreu?

Ângela Mendes de Almeida - A partir da audição de sete testemunhas foi possível reconstituir diversos momentos que fechavam uma história sobre o que ocorreu. Merlino foi preso no dia 15 de julho de 1971 e, segundo as testemunhas, torturado no pau de arara, tendo, em seguida, recebido choques elétricos por quase 24 horas. A partir daí ele foi jogado em uma solitária e depois retirado, pois estava com as pernas gangrenando. No testemunho do Otacílio Cecchini, outro militante do POC, ele diz que estava em uma sala com o major Ustra quando o militar recebeu um telefonema do hospital. Na conversa, perguntavam ao comandante se era para consultar a família do preso porque, para salvá-lo, seria preciso amputar suas duas pernas. E o major Ustra respondeu para não avisar a família, ou seja, ele decidiu pela morte do Merlino.

Istoé -A sra. encontrou o major Ustra durante o julgamento?

Ângela Mendes de Almeida - Não, nunca o encontrei pessoalmente. O réu não é obrigado a comparecer e ele não compareceu.

Istoé -A sra. sabe quem entregou o nome de Merlino aos militares?

Ângela Mendes de Almeida - Sei, mas eu procurei esquecer, porque tenho certeza de que a pessoa falou isso também sob tortura. Era um militante sem nenhuma importância dentro do POC e que, por um acaso, sabia o nome do Merlino.

Istoé -A morte dele foi uma surpresa?

Ângela Mendes de Almeida - Sim. Ele havia trabalhado na "Folha da Tarde", não estava na clandestinidade e muita gente que o conhecia nem imaginava que ele militava. Também havia o fato de que o POC não era uma organização visada, pois não fazíamos ações armadas mais ostensivas. Foi uma surpresa para todos.

Istoé -A sra. considera que a atuação da presidenta Dilma Rousseff na elucidação dos crimes cometidos na ditadura tem sido satisfatória?

Ângela Mendes de Almeida - Não. Ela está muito aquém do que deveria. Houve um pequeno avanço quando ela proibiu os quartéis de comemorar a data do golpe militar, porém ela poderia ter feito mais. E, de uma forma particular, acho que ela não tem demonstrado nenhuma sensibilidade com a tortura que acontece nos dias de hoje. A ONU tem incentivado um protocolo que permitirá a grupos de pessoas entrar em locais onde há tortura, sem pré-aviso, para poder detectar e dificultar a tortura. A Dilma deveria ser a primeira a abraçar essa proposta, mas tem feito justamente o contrário e dificultado o trâmite.

Istoé -A Comissão da Verdade, do modo como funciona, é um avanço?

Ângela Mendes de Almeida - Tenho bastante preocupação com a comissão. Quando ela foi formada, analisaram-se as emendas do DEM e do PSDB, mas não se deu nenhuma atenção às propostas dos familiares de mortos e desaparecidos.

Istoé -Que propostas são essas?

Ângela Mendes de Almeida - Um exemplo é o período definido para a atuação da comissão, de 1946 a 1988. Ninguém entende por que essa definição. Esse período é um absurdo. Por que 1946? Deveríamos então retornar até 1937, que é o período da ditadura varguista. Ou, ainda mais sensato, estabelecer que as investigações fossem a partir de 1964. Só que o Exército não queria essa menção direta ao golpe militar, pois eles queriam que a Comissão da Verdade estudasse os crimes da ditadura e os crimes da esquerda. Só que os crimes da esquerda não foram cometidos por agentes do Estado.

Istoé -Por que fazer a diferenciação entre os crimes dos militares e os da esquerda?

Ângela Mendes de Almeida - As pessoas têm de pôr na cabeça que crime de lesa-humanidade é aquele cometido por agentes do Estado. Vamos abandonar a questão de que morreram pessoas dos dois lados, tanto militares quanto militantes de esquerda. Não é essa a questão. A questão são os crimes cometidos em nome do Estado.

Istoé -Por que julgar os torturadores é importante?

Ângela Mendes de Almeida - Além de fazer justiça a nós, familiares, a punição dos torturadores serve para a sociedade entender que a tortura é um crime. Ainda torturamos, só que hoje quem pratica essa violência é a polícia e o foco não são mais os militantes políticos, mas, sobretudo, os pobres. Só punindo os torturadores a tortura acaba.

Istoé -O Brasil é um país tolerante à tortura?

Ângela Mendes de Almeida - Sim, e não vem só da ditadura, vem da escravidão. Os castigos públicos estão inseridos na mentalidade brasileira. A sociedade precisa entender que os policiais são funcionários públicos e não têm o direito de torturar e matar, mesmo que estejam diante de criminosos. A ditadura acabou, mas o terrorismo de Estado não, porque a polícia continua torturando e matando.

domingo, 19 de agosto de 2012

Ditadura: Nova versão para morte de Anísio Teixeira é investigada

Anísio Teixeira, morte sob suspeita
Autor(es): » RENATO ALVES » GIZELLA RODRIGUES
Correio Braziliense - 18/08/2012

Professor baiano diz que o ex-reitor da Universidade de Brasília teria sido sequestrado, torturado e morto por agentes da repressão em 1971 — e não caído acidentalmente em um poço de elevador, no Rio, segundo a versão oficial. O caso será investigado pela Comissão da Verdade da UnB.

Comissão de Memória e Verdade da UnB investiga nova versão sobre o fim da vida do ex-reitor da instituição. Segundo depoimento, ele teria sido sequestrado e torturado por agentes da repressão antes de ser morto

Anísio Teixeira morreu a pancadas, após ser sequestrado, levado para uma unidade da Aeronáutica e torturado por agentes da ditadura, em 1971. A nova versão para a morte do ex-reitor da Universidade de Brasília (UnB) é investigada pela Comissão de Memória e Verdade, criada pela instituição de ensino superior. Na história oficial, contada pelos militares, ele perdeu a vida após cair acidentalmente no poço do elevador de serviço do prédio onde morava o amigo Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, em Botafogo, no Rio de Janeiro.

A recente explicação foi apresentada à comissão da UnB pelo professor João Augusto de Lima Rocha, da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Biógrafo de Anísio Teixeira, ele disse saber do assassinato por meio de duas fontes. Uma é o ex-governador baiano Luís Viana Filho (1967-1971), acionado pelos familiares de Teixeira após ele desaparecer, em 11 de março de 1971. "A família do ex-reitor entrou em contato com o então governador da Bahia pedindo ajuda para encontrá-lo. Viana Filho foi informado por agentes do Rio de Janeiro que o educador estava detido na Aeronáutica", contou Lima Rocha.

Essa detenção nunca havia sido revelada pelos militares, pelo ex-governador nem pelo professor, apesar de Viana Filho e Lima Rocha terem publicado biografias de Anísio Teixeira. Outra fonte do professor é o também docente e crítico literário Afrânio Coutinho. "Em uma entrevista para o livro (a biografia de Teixeira), ele me contou ter presenciado a necropsia do corpo do ex-reitor. Disse ter visto quase todos os ossos quebrados, o que indica a tortura", lembrou Lima Rocha. Teixeira ainda teve traumatismo na cabeça e no ombro, devido a pancadas com objeto de forma cilíndrica, possivelmente feito de madeira, de acordo com o apurado por seu biógrafo.

A família do ex-reitor da Universidade de Brasília admite a versão contada pelo professor Lima Rocha, que a apresentou à Comissão de Memória e Verdade da universidade na semana passada. Anísio Teixeira morreu em 13 de março de 1971. Oficialmente, o educador teria sofrido uma queda acidental no fosse do elevador no momento em que subia ao apartamento do amigo Aurélio Buarque de Holanda.

"Subversão"

A Comissão da Verdade da UnB reúne documentos para apurar a morte de Anísio Teixeira, como o relato de Afrânio Coutinho, registrado nos arquivos da Academia Brasileira de Letras. "Por lei, só poderíamos ter acesso a esse documento em 2021, mas, com as prerrogativas da comissão, vamos tentar uma cópia dele o mais rápido possível", explicou o professor José Otávio Nogueira Guimarães, do Departamento de História da UnB e integrante do grupo.

Quando desapareceu, Anísio Teixeira estaria com documentos do Partido Comunista, do qual o filho fazia parte. "Isso foi relatado pelo filho dele (do Anísio). Ele contou ainda que o pai vinha sendo ameaçado de morte", disse Lima Rocha. "Os depoimentos revelados até agora confirmam que a hipótese de ele (o ex-reitor) ter sido morto pelos ditadores é plausível", afirmou Guimarães.

A UnB formou a própria Comissão da Verdade após série de reportagens do Correio, publicada em abril. Elas mostraram como os militares atuaram na instituição de ensino superior. Entre outras revelações, o jornal comprovou que o governo continuou a espionar a comunidade universitária durante a democracia. Mostrou ainda que, para os agentes da repressão, os primeiros reitores da UnB nomeados pelos militares não tinham pulso firme para conter as ações contra a ditadura no câmpus. Mais de uma vez, os espiões pediram a troca de comando na instituição e foram atendidos.

Então diretor da Faculdade de Medicina Ribeirão Preto (SP) e ex-secretário de Saúde do estado de São Paulo, o médico Zeferino Vaz foi o primeiro reitor da UnB nomeado pelo governo. Ele tomou posse em 13 de abril de 1964, após o regime extinguir o mandato de Anísio Teixeira. Para justificar tal mudança, os militares se basearam em relatórios do SNI.

Entre outras observações e conclusões, os arapongas afirmam que, na gestão de Teixeira, "chegou-se a preparar, no próprio câmpus, a mobilização da luta armada. A população foi conclamada a estruturar-se numa frente estudantil-operária-camponesa". Diante desse quadro, em 9 de abril de 1964, nove dias após o golpe militar, tropas do Exército e da PM de Minas invadiram a UnB sob a alegação de investigar denúncias de "subversão e indisciplina".

Perfil

Pioneiro na educação Como educador, o baiano Anísio Spínola Teixeira (1900-1971) viajou à Europa e aos Estados Unidos para observar os sistemas escolares. No Brasil, defendeu o conceito de escola única, pública e gratuita como forma de garantir a democracia. Foi o primeiro a tratar a educação com base filosófica. Instituiu na Bahia, em 1950, a primeira escola parque, que procurava oferecer à criança uma escola integral. Fundou a Comissão de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes) da UnB.

Repressão na academia

Com o golpe instaurado em 1964, os militares aterrorizaram a UnB

9 de abril de 1964
Nove dias após o golpe militar, tropas do Exército e da PM de Minas Gerais invadem a UnB sob a alegação de investigar denúncias de "subversão e indisciplina". Prendem 12 professores para interrogatório. No mesmo mês, a ditadura extingue o mandato do reitor, Anísio Teixeira. No lugar dele, é nomeado o médico Zeferino Vaz.

8 de setembro de 1965
Professores entram em greve por 24h em resposta à demissão dos colegas Ernani Maria de Fiori, Edna Soter de Oliveira e Roberto Décio de Las Casas, afastados por "conveniência da administração". Dias depois, os alunos aderem ao movimento. O reitor, Laerte Ramos de Carvalho, pede o envio de tropas ao câmpus.

11 outubro de 1965
As tropas chegam durante a madrugada e cercam as entradas do câmpus. Alunos e professores são impedidos de ter acesso aos prédios. Os soldados também proíbem qualquer agrupamento de pessoas.

18 de outubro de 1965
Pedem demissão 223 dos 305 professores da UnB, após a publicação de lista de desligamento de 15 colegas. Zeferino Vaz renuncia e o professor de filosofia Laerte Ramos de Carvalho assume a reitoria.

28 de março de 1968
Comandados por Honestino Guimarães, cerca de 3 mil alunos da UnB protestam contra a morte do estudante secundarista Edson Luis, morto por PMs no Rio de Janeiro. Sete universitários acabam detidos, entre eles, Honestino (foto), que seria dado como desaparecido após ser preso por militares da Marinha, no Rio, em 1973.

29 de agosto de 1968
A UnB é invadida pelas polícias Militar, Civil, Política (DOPS) e do Exército. O estudante Waldemar Alves é baleado na cabeça e passa meses em estado grave no hospital.

25 de maio de 1976
Doutor em física e oficial da Marinha, José Carlos de Almeida Azevedo assume a reitoria. Recomeçam as manifestações. Alunos protestam contra a má qualidade do ensino, a ociosidade e a falta de professores.

1977
A UnB sofre três invasões militares no ano. Em 31 de maio, estudantes decidem entrar em greve por tempo indeterminado. O reitor, José Azevedo, chama a PM para intimidar os universitários. A reitoria pune 64 estudantes com expulsão ou suspensão de prazos diversos.

1984 e 1985
Em maio de 1984, a comunidade universitária elege o professor Cristovam Buarque para reitor. Mas ele toma posse apenas em 26 de julho de 1985. Nesse período, os militares tentaram empossar no cargo um nome escolhido pelo presidente João Figueiredo, o último ditador no poder. Professores resistiram e criou-se o impasse por meses.

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

Religião e história nutrem conflito sírio

Autor(es): Por Bill Spindle e Sam Dagher | The Wall Street Journal
Valor Econômico - 14/08/2012

Muçulmanos sírios e libaneses fazem oração, enquanto um líder salafita prega a favor do Exército Livre da Síria, um dos principais grupos rebeldes a combater o regime do presidente Bashar al Assad

Perto da cidade síria de Aleppo, a Igreja de São Simeão Estilita comemora o asceta do século V que se tornou uma celebridade antiga ao viver no topo de uma coluna por décadas para demonstrar sua fé. O Krak dos Cavaleiros, castelo imponente nas proximidades de Homs, foi uma fortaleza da ordem dos Cavaleiros Hospitalários em sua missão de defender um reino das Cruzadas. Seydnaya, um imponente mosteiro na cidade de mesmo nome, foi provavelmente construído no tempo de Justiniano.

Uma freira desse mosteiro falou recentemente sobre a atual crise da Síria em uma alcova à luz de velas, cercada por ícones votivos de mil anos, doados por fiéis russos ortodoxos, e pingentes de prata com formas de partes do corpo que os suplicantes procuravam curar: pés, cabeças, pernas, braços e até um par de pulmões e um rim.

"Não é algo de pequenas dimensões o que estamos enfrentando", disse ela, se referindo tanto à situação do país quanto de sua religião. "Nós simplesmente desejamos que a matança cesse."

Poucos lugares são tão centrais como a Síria na longa história do cristianismo. Saulo de Tarso fez sua conversão aqui, supostamente na Rua Chamada Direita, que ainda existente em Damasco. Foi nessas terras que ele praticou suas primeiras missões com a meta de atrair não judeus para a nascente fé.

Um século atrás, o Levante tinha uma população possivelmente 20% cristã. Agora, está mais próxima de 5%. A Síria hoje hospeda comunidades vibrantes, embora minguantes, de diversas antigas seitas: sírios ortodoxos, sírios católicos, gregos ortodoxos, gregos católicos e armênios ortodoxos.

Mas as comunidades cristãs na Síria estão sendo severamente testadas pela revolta que angustia o país há mais de um ano. Elas relembram o ano de 636, quando o imperador bizantino cristão Heráclio viu seu exército ser derrotado pelas forças muçulmanas ao sul da atual Damasco. "A paz esteja contigo, Síria. Que bela terra serás para os nossos inimigos", lamentou o imperador, antes de fugir para a Antioquia. No Século VIII, uma famosa igreja em Damasco foi demolida para dar lugar a uma mesquita omíada, hoje um dos lugares mais sagrados do Islã.

Não poucos cristãos na moderna Síria temem que a atual crise possa terminar da mesma maneira, para eles, se Bashar al Assad e seu regime forem derrotados pela insurgência rebelde.

Conflito torna-se cada vez mais sectário e oprime algumas das mais antigas comunidades cristãs na Terra

Sob muitos aspectos, é uma preocupação estranha. Cristãos e muçulmanos viveram lado a lado com um mínimo de atrito durante as décadas em que a família Assad esteve no poder. Historicamente, comunidades cristãs locais por vezes acolheram até mesmo senhores muçulmanos, quando os libertaram da mão pesada de Constantinopla ou de Roma. Em muitos lugares, os dois grupos continuam, ainda hoje, a estender as mãos uns aos outros. Até mesmo extremistas rebeldes dizem também nada ter contra os cristãos.

Mas, à medida que o conflito no país assume contornos sectários cada vez mais acentuados, pois a maioria dos cristãos se posiciona a favor do regime ou pelo menos não se opõe ativamente a ele, algumas das mais antigas comunidades cristãs da Terra estão se sentindo oprimidas.

"Levamos uma vida que tem sido inveja de muitos", diz Isadore Battikha, que até 2010 foi arcebispo de Homs, Hama e Yabroud para a Igreja Católica greco-melquita. "Mas, hoje, o medo é uma realidade."

O padre Battikha é um dos muitos apoiadores ferrenhos do presidente Assad.

Desde o início do atual conflito, história e religião têm desempenhado um papel fundamental no fomento das paixões em ambos os campos na Síria. E isso tornou-se mais pronunciado à medida que o conflito foi se arrastando, tornando-se mais sangrento e perverso.

Uma das afirmações frequentemente repetidas feitas pelo regime sírio explora com eficácia antigas rivalidades. O conflito, alega-se, é uma tentativa de neo-otomanos na Turquia e ultraconservadores muçulmanos de ambições expansionistas na Arábia Saudita, conhecidos como wahhabitas, de conquistar terreno na Síria.

Essa narrativa, segundo a qual uma maioria de muçulmanos sunitas domina e reprime as minorias, é agora matéria de noticiários noite após noite na televisão estatal síria. O regime sabe que essa mensagem repercute bem entre os cristãos e outras minorias.

Os otomanos, turcos que governaram a Síria de 1516 até a Primeira Guerra Mundial, relegaram os cristãos a um status de cidadãos de segunda classe. Eles foram autorizados a praticar sua religião e a governarem-se em assuntos que não diziam respeito aos muçulmanos. Mas também foram obrigados a pagar impostos especiais e havia muitas restrições a eles no que dizia respeito a interações com os muçulmanos. O wahhabismo, a forma ascética e fortemente conservadora do islamismo praticado na Arábia Saudita, é ainda mais duro em relação aos cristãos.

Os rebeldes facilitaram, para o regime, a manipulação desse tipo de temor. Num esforço para inspirar seus próprios combatentes e obter favores e apoio de estrangeiros, principalmente da Arábia Saudita e do Catar, o único outro país onde o wahhabismo é a religião estatal, alguns caracterizam o conflito como uma luta para restaurar as glórias dos califados islâmicos e resgatar a Síria do domínio dos infiéis.

Isso transparece claramente nos nomes adotados para identificar as brigadas do Exército Livre da Síria - a frouxa articulação de milícias locais e desertores do Exército. Muitas das milícias receberam seus nomes em homenagem a figuras reverenciadas por muçulmanos sunitas como o terceiro califa Umar ibn al -Khattab, cujo título principal era al Farouq, que significa "aquele que distingue verdade de falsidade", e o guerreiro islâmico e comandante militar Khalid ibn al Walid.

Foi Ibn al Walid, combatendo pelo califa Umar, quem derrotou o imperador Heráclio em 636, durante a primeira onda da conquista muçulmana proveniente da Península Arábica nos anos que se seguiram à morte do profeta Maomé.

O principal alvo dos rebeldes de inclinação mais sectária não são os cristãos. São os alauitas, grupo minoritário ao qual pertence a família Assad. Os alauitas, que compõem cerca de 12% da população da Síria, praticamente o mesmo percentual dos cristãos, são uma seita heterodoxa que ramificou-se do Islã. São considerados heréticos por extremistas muçulmanos, muito piores do que os cristãos.

O regime sírio frequentemente explora com eficácia antigas rivalidades religiosas

Apesar disso, muitos cristãos temem que um governo que venha a substituir o regime de Assad possa ser dominado por grupos como a Irmandade Muçulmana, que poderiam devolvê-los à condição de cidadãos de segunda classe. Eles também temem que suas comunidades possam ser devastadas pelo fogo cruzado entre a insurgência predominantemente muçulmana sunita síria e o bem armado regime alauita, da mesma maneira que os cristãos no vizinho Iraque muito sofreram durante as guerras sectárias lá nos últimos dez anos.

A expansão do conflito a Damasco e Aleppo, as duas maiores cidades sírias, amplificou os temores dos cristãos. Eles estão sob pressão tanto do regime como dos rebeldes para que tomem partido e declarem suas alianças. Aqueles que querem evitar tomar partido estão deixando o país.

Por ora, muitos refugiados - tanto cristãos como muçulmanos e outros - mudaram-se para áreas onde se sentem mais seguros na Síria ou no vizinho Líbano. Até agora, não emergiu o padrão visto no Iraque, onde muitos cristãos emigraram definitivamente para países ocidentais.

Os exemplos mais claros de adesão de cristãos ao regime ocorreram em Homs. Na cidade de Qusayr, a sudoeste de Homs, uma família cristã ajudou as forças de segurança pegando em armas e operando postos de controle. O resultado foi uma reação contra todos os cristãos, e a cidade ficou praticamente esvaziada de cristãos a partir de então.

Em Wadi al Nasara - o Vale dos Cristãos, outro enclave em meio a cerca de 30 aldeias a oeste da cidade de Homs -, uma família de cristãos pró-regime combateu ao lado de elementos leais a alauitas, dizem moradores que recentemente fugiram da área. Cristãos pro-regime tomaram, no belíssimo vale, dois palácios de propriedade de diplomatas árabes do Golfo, disseram eles.

Perto dali, combatentes sunitas estabeleceram uma base no Krak dos Cavaleiros, castelo que é um marco histórico do Século XII e pertencia às cruzadas. "Agora é impossível para um muçulmano descer até o vale", disse um morador da área.

O padre Paulo Dall"Oglio, sacerdote jesuíta italiano que viveu na Síria durante três décadas, mas foi expulso pelo regime em junho, diz que muitos membros da igreja têm velhos laços com o regime e com os serviços de inteligência, o que moldou sua posição.

"Muitos cristãos na Síria acreditam não haver alternativa ao regime de Bashar al Assad", diz o padre Dall"Oglio.

Alguns cristãos, porém, estão se esforçando para superar esse fosso, tentando um diálogo com a oposição e os rebeldes, ou pelo menos lançando uma ponte sobre o abismo sectário que cada vez mais os separam.

Basilios Nassar, um sacerdote ortodoxo grego da cidade central de Hama, foi baleado e morto por franco-atiradores do governo em janeiro, enquanto ajudava a evacuar os feridos em confrontos em um bairro, dizem ativistas cristãos.

Eles dizem que os franco-atiradores provavelmente o confundiram com um combatente islâmico por causa de sua barba e vestes negras. Sua igreja disse que ele foi morto por "um grupo terrorista armado".

Caroline, uma ativista cristã que pediu para ser identificada apenas por seu primeiro nome, foi presa pelas forças de segurança em abril, em Damasco, enquanto distribuía ovos de Páscoa para filhos de cristãos, de sunitas e de famílias alauitas expulsas pelos combates em Homs.

Tiras de papel com passagens do Alcorão e da Bíblia acompanhavam os ovos. Caroline disse que esse ato fazia parte de suas tentativas de eliminar gradualmente as barreiras que agora separam os grupos religiosos na Síria devido ao conflito.

Anteriormente, ela fez questão de ajudar as esposas e filhos de homens mortos em combate na cidade predominantemente sunita de Douma, nos arredores de Damasco, distribuindo provisões de comida e envelopes com dinheiro.

Ela também procurou realizar reuniões com líderes eclesiásticos para pedir-lhes que "não impusessem uma posição em relação a todos os cristãos". Ela disse que a maioria a repreendeu por ser contra o regime ou não quiseram dialogar com ela.

O padre Nawras Sammour, um jesuíta de 44 anos de idade originário de Alepo, dirige um programa de assistência em todo o país, denominado Serviço Jesuíta para Refugiados. O grupo está atualmente prestando assistência a 6.000 famílias sírias em todo o país que deixaram suas casas, afetadas pela violência: muçulmanos sunitas e xiitas, drusos, alauitas e cristãos.

Ele acredita que somente mediante diálogo entre diferentes grupos religiosos os cristãos continuarão sendo uma presença vibrante nessas antigas terras. Ele admite os problemas e diz compreender as preocupações dos cristãos.

"Veja o Iraque, veja o Egito", diz ele, listando os países vizinhos onde turbulência política e a substituição de um governante autoritário por uma ressurgência islâmica impactou comunidades cristãs há muito estabelecidas. "Mas, apesar disso, temos de construir pontes. Esses são os princípios do Evangelho. Não podemos simplesmente escolher um lado e aderir a ele".

Alexandre Haddad, um residente com 66 anos de idade na aldeia serrana de Maalula, está preocupado com o destino de sua antiga comunidade cristã, mas assume uma perspectiva de longo prazo. Como outros moradores no vilarejo, ele fala uma variante do aramaico, a língua falada pelo próprio Jesus.

"Muitas pessoas passaram por este país - bizantinos, muçulmanos, tamerlanos, mongóis, otomanos", disse Haddad, sentado à sombra do convento de Santa Tecla, heroína da lenda bíblica "Os Atos de Paulo e Tecla".

"Jesus era originário de [uma região] um pouco ao sul. São Paulo esteve em Malula ", diz ele. "O cristianismo é muito forte aqui"

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

Depois da euforia (IV): educação



Autor(es): Fabio Giambiagi
Valor Econômico - 08/08/2012
 

Este é o quarto artigo acerca do meu livro com Armando Castelar ("Além da euforia", Ed. Campus) referente aos problemas da nossa realidade e que serão um obstáculo para a continuidade do crescimento. Depois de um primeiro texto geral, os artigos posteriores trataram da nossa baixa produtividade e da poupança doméstica e hoje iremos abordar o tema da educação. O desenvolvimento sustentável, para além da "etapa fácil" da ocupação de capacidade ociosa e da redução da taxa de desemprego, se constrói sobre alicerces que, no Brasil, deixam a desejar - realidade essa que, se não for modificada, irá conspirar contra nosso êxito no longo prazo.
O capítulo sobre educação foi escrito por Marcio Gold Firmo, cujas informações acerca do tema são aqui sintetizadas. A tabela é um bom indicador para medir nosso atraso relativo. É verdade que entre 2000 e 2010 o número de anos médios de escolaridade da População Economicamente Ativa (PEA) no Brasil aumentou 1,1 ano. Ocorre que:
i) na década anterior, tinha aumentado 1,9 anos;
ii) na primeira década deste século, a escolaridade média se elevou também 1,1 ano nos países selecionados da periferia europeia e nos "tigres" asiáticos e em 0,9 anos nos maiores países da América Latina exceto Brasil; e
iii) no conjunto de países da tabela, em 2010 o Brasil fica muito atrás em qualquer comparação feita.
Estamos mal na foto - e o filme não chega a ser animador. O Brasil evoluiu, mas o resto do mundo também. Consequentemente, nosso atraso relativo permanece. Uma realidade similar se observa em diversos indicadores. Na nota de matemática do Programme for International Student Assessment (Pisa), hoje o melhor "termômetro" comparativo da qualidade da educação em diversos países, mesmo considerando o avanço recente, ficamos atrás não apenas dos países desenvolvidos, mas também de países como Argentina, México, Chile, Uruguai e também atrás de Rússia, Sérvia, Turquia e Cazaquistão. No mesmo PISA, em 2009, o percentual de alunos com desempenho abaixo do adequado em matemática foi de 8% na Coreia do Sul, 22% na média dos países da OCDE, 23% nos EUA, 30% na Grécia, 42% na Turquia e constrangedores 69% no Brasil. Nos exames do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (SAEB), o percentual de alunos com desempenho em Matemática considerado adequado à sua série já é baixo no 5º ano do Ensino Fundamental (apenas 33%) e cai ainda mais, para apenas 15%, no 9º ano e para 11% no 3º ano do Ensino Médio.
Alguém poderia alegar que o problema é de escassez de verbas. Essa é uma questão controversa, mas objetivamente: a) o gasto em educação no Brasil passou de 3,9% para 5% do PIB entre os anos de 2000 e 2010; e b) neste último ano, o gasto em educação no Brasil como fração do PIB, pelos dados da OCDE, era maior do que nos EUA e do que a média da OCDE, além de ser também superior ao de Polônia, Holanda, Canadá, Espanha, Coréia do Sul, Alemanha, Austrália, Chile e Japão.
País prioriza o ensino direcionado à formação do cidadão, ao invés de ensinar matemática e português
Parte do nosso atraso vem de longa data e resulta da opção que as elites dirigentes fizeram há décadas ao adotar um modelo fortemente concentrador de renda e com escassas preocupações com a melhora de oportunidades para os filhos das famílias mais humildes, através da priorização da educação. A Coreia do Sul fez exatamente o contrário a partir dos anos 50, com resultados espetaculares.
Parte do problema, porém, deriva de escolhas recentes, como aquelas associadas a certo tipo de ensino voltado para a formação do cidadão, em oposição à priorização do aprendizado de matemática e português. Sem uma base forte nessas disciplinas, é impossível esperar que o aluno tenha um bom desempenho nas demais. Cabe destacar, como um bom sinal, o empenho do setor privado e da academia em favor do avanço da avaliação da eficácia de diferentes tipos de intervenções educacionais, a despeito da resistência de parte do setor de educação pública. É imperativo que os governos assumam o papel de multiplicadores das experiências inovadoras de sucesso.
Na educação, o Brasil tem hoje uma atitude oposta à que assume no futebol, no qual o segundo lugar é visto como uma derrota. Comparativamente, a autocongratulação em relação aos resultados educacionais de nossas crianças e jovens é de uma complacência inadmissível. Aspirar a um crescimento sustentável de 5% ao ano, desse jeito, é apenas um sonho.
Fabio Giambiagi, economista, coorganizador do livro "Economia Brasileira Contemporânea: 1945/2010" (Editora Campus), escreve mensalmente às quartas-feiras.

quinta-feira, 2 de agosto de 2012

Sete décadas depois, a revisão da história

Correio Braziliense - 28/07/2012

Favelas do Rio, como a Rocinha, foram ocupadas pelo tráfico, mas recentemente retomadas pela polícia, reacendendo a imagem de pacificação, tão presente em Brasil, país do futuro

Setenta e um anos separam o Brasil que Zweig percorreu em 1941 e o Brasil dos dias de hoje. No início dos anos 1940, o Brasil possuía 41 milhões de habitantes. Hoje, tem quase cinco vezes mais – 190 milhões. Entre 1940 e 2012, a expectativa de vida do brasileiro quase que dobrou, passando de 42,7 anos para 73,1 anos, segundo as últimas estimativas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

De uma nação que mal havia começado a entrar na era industrial e cuja maioria da população ainda vivia no campo, o Brasil é hoje a sexta economia mundial, embora a crise econômica europeia esteja começando a mostrar seus reflexos por aqui também. No campo político, o Brasil alternou períodos de ditadura com experiências democráticas. Embora problemas como a corrupção não estejam ainda sob controle, o Brasil é hoje um Estado democrático consolidado. Não seria o caso de se perguntar, então, se o futuro imaginado por Zewig finalmente não chegou?

Para o sociólogo Rudá Ricci, diretor do Instituto Cultiva, não se pode dizer que o futuro chegou integralmente, pois o país tem problemas sérios de eficiência no setor público e na sua infraestrutura, como apontou estudo sobre a competitividade do Brasil no mundo elaborado pela escola de admistração suíça IMD (ver artigo nas páginas 22 a 24). Por outro lado, com base no mesmo estudo, ele entende que, para algumas áreas o futuro chegou, ainda que com percalços. "Caminhamos para ser o quinto maior mercado consumidor do mundo, temos uma população majoritariamente de classe média, somos o terceiro país do mundo em acesso às redes sociais e o quinto em atração de investimento produtivo externo. Mas caminhamos aos solavancos. Nossas instituições políticas são arcaicas e se ressentem de seus vícios de origem, como o Senado, que foi criado para dar lugar às oligarquias rurais regionais (como nos EUA) e não para, efetivamente, representar os estados que compõem nossa federação", afirma Rudá.

A mesma visão tem o antropólogo Luiz Eduardo Soares, que foi secretário nacional de Segurança durante o governo Lula. Para ele, o país avançou muito a partir de 1994, com o Plano Real, que, segundo ele, estendeu para a economia e a administração pública as condições indispensáveis para a vigência da institucionalidade democrática que havia sido recentemente conquistada e fora formalmente consagrada na Constituição de 1988. "Os governos FHC e Lula, a despeito de seus problemas e limites, e sem prejuízo de suas diferenças, contribuíram para a consolidação democrática, a redução das desigualdades e a retomada do crescimento."

Porém, segundo Luiz Eduardo Soares, os problemas a serem superados para que o país chegue ao futuro ainda são muitos. "A representação política está deteriorada, a confiança popular está profundamente abalada, a desigualdade no acesso à Justiça permanece abissal, corroendo sua credibilidade, o racismo ainda não foi reconhecido como um dos mais dramáticos problemas nacionais, a violência não foi enfrentada com racionalidade, nos marcos da legalidade, a homofobia e a brutalidade contra a mulher intensificam-se, violações aos direitos humanos prosperam em todo o país e a pobreza tem sido criminalizada como nunca." Em resumo, segundo Luiz Eduardo Soares, o Brasil continua sendo o "casamento perverso entre o atavismo regressivo e o progressismo inspirador, dançando na corda bamba entre avanços e recuos, sombras e luzes. Somos o país do passado e do futuro", define.

O ex-ministro da Fazenda Maílson da Nóbrega considera que o futuro chegou não pelas razões apontadas por Stefan Zweig: extensão territorial e recursos naturais. "O futuro chegou porque construímos as instituições básicas que geram a prosperidade: democracia, Judiciário independente – que garante direitos de propriedade e respeito aos contratos – e imprensa livre e independente. Ainda não está assegurada nossa integração ao mundo rico, mas dificilmente voltaremos aos tempos de instabilidade política e inflação sem controle", afirma Maílson, que é autor do livro O futuro chegou, editado em 2005.

Para Cláudio Weber Abramo, diretor-executivo da ONG Transparência Brasil, o futuro imaginado por Stefan Zweig em 1941 está longe de se concretizar. "Um país que se acostumou à cópia, à repetição acrítica de tudo o que soa popular e à supressão do contraditório. Esse é o Brasil do século 21, no qual a invenção é vista como contravenção e a imaginação só é permitida quando a serviço da embromação mercadológica. Tudo é imagem, ficando a substância das coisas soterrada sob a complacência generalizada de quem teria o dever da crítica. É verdade que a mediocridade brasileira não resulta de alguma transformação recente. Excetuando-se talvez a música, a sociedade brasileira jamais produziu algo de original. Consumidores para sempre: esse é o futuro do Brasil", afirma Cláudio Weber Abramo.

Bem menos pessimista é a avaliação do jurista Ives Gandra, especialista em direito tributário. Para ele, o Brasil é, ao mesmo tempo, um país do passado, do presente e do futuro. "Como país do passado, mantém estruturas políticas arcaicas, concepção de que a autoridade é mais importante que o cidadão, departamentos burocráticos anacrônicos, sem ter adotado, salvo exceções, a burocracia profissionalizada, e não ter ainda modernizado seu sindicalismo e sua legislação trabalhista e previdenciária. É um país do presente com um sistema financeiro e eleitoral melhor que das nações desenvolvidas e, graças ao setor privado e não aos governos, um país economicamente estável e emergente. E é um país do futuro, pois ainda há muito a mudar para destravar os quatro gargalos da nossa economia: excesso de tributos, excesso de encargos trabalhistas, excesso de burocracia e excesso de corrupção, a que acrescento escassez de patriotismo em nossos políticos."

O empresário Robson Andrade, presidente da Confederação Nacional da Indústria (CNI), também entende que no Brasil dos dias de hoje, o presente e o futuro caminham juntos. "Soubemos, sim, aproveitar todo o potencial que Zweig via em nosso país e, a partir dele, construir o que é hoje uma grande democracia e a sexta maior economia do mundo. Moderna e inovadora, inclusiva e transformadora". Para Robson Andrade, seguir adiante é o desafio do Brasil de hoje, "em um mundo em constante e acelerada evolução e asfixiado por grave crise econômica e financeira". Nesse sentido, ele considera como maior obstáculo a ser vencido o de trabalhar pelo aumento da produtividade e da competitividade da economia. "Como fez Zweig em seu diagnóstico premonitório, essa é uma indeclinável convocação à sociedade brasileira, o que, mais uma vez, implica perscrutar o futuro para definir como agir no presente", afirmou Robson Andrade.

O senador Cristovam Buarque (PDT-DF), ex-reitor da Universidade Nacional de Brasília (UnB) e profundo conhecedor da obra do escritor austríaco, analisa a utopia de Stefan Zweig por um outro ângulo. Para o senador, o cenário ideal imaginado por ele há 70 anos é outro, embora muitos países, entre os quais inclui o Brasil, estejam trabalhando para se tornarem peças ativas deste mesmo cenário. "Nesse mundo que está aí, dessa civilização industrial predatória, não seremos o país do futuro. Somos emergentes tardios. Emergimos para um mundo em extinção, que é o mundo do consumo, da depredação ambiental. Estamos apenas imitando o ocidente e não construindo uma alternativa. Quem não constroi alternativa, não é futuro. É rabeira. Vai atrás dos outros. Para ser futuro, tem que trazer novidade", afirmou Cristovam Buarque, para quem o cenário futuro de descrito por Zweig não existe mais. "O futuro também morre. E aquele futuro morreu".

A professora emérita também UnB Bárbara Freitag lembra que o livro Brasil, país do futuro, foi escrito para dois públicos distintos: o europeu e o brasileiro. O europeu poderia ter a chance de superar iniciar uma vida nova sem os traumas do nazismo. Para os brasileiros, que não tiveram a vivência da guerra e dos campos de concentração, a promessa de felicidade consistia, segundo Freitag, em sair da pobreza, da ignorância, da fome e do desemprego. Para ela, nos últimos 60 anos, a situação mudou para melhor, tanto para os europeus que vieram para o Brasil, quanto para os próprios brasileiros, "que hoje buscam sua sorte, em liberdade, dentro e fora do país". Ela afirma que não se importa com o fato de que o futuro sonhado por Stefan Zweig para o Brasil possa ser interpretado com uma utopia: "A utopias existem para serem perseguidas".

Educação é a base de tudo

Correio Braziliense - 28/07/2012

Queda do PIB ajudou a reduzir a competitividade internacional do Brasil nos últimos dois anos
Carlos Arruda e Fabiana Madsen *

Em 2010, o Brasil chegou à 38ª posição entre os países mais competitivos do mundo. Nos últimos dois anos, interrompeu essa ascenção e caiu para o 56º posto, apenas três na frente do lanterna. Os pesquisadores Carlos Arruda e Fabiana Madsen, da Fundação Dom Cabral (FDC), instituição que coordena a coleta de dados do estudo no Brasi, analisam essa retrocesso e apontam as saídas. Para que isso ocorra, é preciso que o país se antecipe ao futuro.

O índice geral do World Competitiveness Yearbook 2012 mostra que o Brasil está menos competitivo no cenário internacional. Com uma queda de duas posições em relação a 2011, o país chegou à 56ª colocação entre os 59 países analisados. Para retomar o ganho competitivo que acompanhou a economia nacional entre 2007 e 2010 – quando ocupou a 38ª colocação – e alavancar o crescimento do país, o curto prazo não pode ser o foco principal das medidas adotadas tanto por governos quanto por empresas. As ações devem ser planejadas considerando o longo prazo, e assim permitirem retorno positivo e sustentado para o Brasil. A análise detalhada do desempenho da economia brasileira em todos os indicadores que compõem o relatório mostra que em 2012 a perda de competitividade é consequência de deficiências acumuladas nos últimos anos.

Como principais destaques negativos, tem-se o crescimento tímido do PIB em 2011, de 2,7%, quando comparado com o crescimento de 2010, que chegou a 7,5%. Obviamente o baixo crescimento do PIB resulta em perda de competitividade em inúmeros outros fatores, como crescimento da renda per capita, participação no comércio internacional, etc. Revés também foi observado nos investimentos internacionais, em especial no fluxo de investimentos do Brasil no resto do mundo. Em 2011, resultante das crises econômicas vividas na Europa e EUA e uma perspectiva ainda positiva para a economia brasileira, houve uma inversão na direção dos investimentos diretos no exterior por empresas brasileiras que retornaram cerca de US$ 9,3 bilhões para o país, ao mesmo tempo em que investidores estrangeiros trouxeram cerca de US$ 66 bilhões em investimentos diretos. O indicador de comércio internacional também permanece desfavorável. No último ano, conforme dados do Banco Central, o Brasil apresentou um déficit de US$ 52,6 bilhões em seu balanço de transações correntes. Este déficit recorde no país ocorreu apesar do superávit de US$ 58,6 bilhões no balanço de pagamentos em 2011, e de um saldo de US$ 29,8 bilhões na balança comercial do mesmo ano.

Quando analisado o comportamento do indicador de crescimento real da produtividade total, verifica-se um ligeiro aumento no último ano. Em 2010, essa variável fechou em -0,96% (em relação ao PIB) e, em 2011, a taxa de crescimento foi de 0,62%. Ainda assim, esse valor é muito aquém do ideal, quando comparado à taxa de crescimento médio da produtividade das demais economias mundiais, que foi de 2,06%. A produtividade do trabalho em paridade do poder de compra (indicador que elimina a diferença entre o custo de vida dos países) indica que o trabalhador brasileiro produz, em média, o equivalente a US$ 12,56 por hora trabalhada, enquanto a média mundial é de US$ 31,84 por hora trabalhada.

A análise comparativa da competitividade brasileira sugere, no entanto, que o Brasil tem fortes fundamentos para uma potencial melhora em seu desempenho competitivo. Praticamente todos os indicadores de eficiência dos negócios (diversidade, qualidade da gestão, profissionalismo, etc.) indicam de forma consistente a existência de um ambiente empresarial positivo e confiante em seu desempenho – apesar da perda produtiva apresentada anteriormente. Em se tratando do mercado de trabalho, o Brasil se mantém entre os 20 países que têm seus mercados de trabalho mais competitivos. Em 2010 e 2011, conforme apresenta o relatório, a força de trabalho cresceu timidamente (3,05%), chegando a um patamar de 102,5 milhões de pessoas. Pesquisa de opinião realizada anualmente pela Fundação Dom Cabral sobre as práticas gerenciais, atitudes e valores das empresas mostra a confiança do corpo empresarial no potencial de suas atividades.

Ademais, o relatório apontou um ganho de seis posições no conjunto dos indicadores de infraestrutura, indicando a interrupção de um ciclo de três anos de declínio em relação aos 58 países pesquisados. Apesar disso, o Brasil ainda está entre as economias menos competitivas do grupo. O avanço geral em praticamente todas as variáveis relacionadas à infraestrutura sugere que o país está na direção correta, mas talvez a velocidade esteja aquém do necessário. O mesmo se pode observar nos ganhos relacionados ao desenvolvimento tecnológico e à capacidade de geração de novas tecnologias a partir da cooperação entre empresas e entre estas e as universidades. Estes ganhos, importantes, mas tímidos, não resultaram em aumento no número de patentes e novas tecnologias geradas no país, tampouco em exportações de produtos com maior valor agregado. Os ganhos competitivos existem, mas também sinalizam para um problema enfrentado pelo Brasil e do qual tanto o setor público quanto o privado estão cientes: o atraso do país na eficiência e técnica para a criação e desenvolvimento de novas tecnologias e inovações, principalmente devido à ineficiência nos sistemas educacionais, cooperação entre os setores público e privado, marco regulatório adequado para incentivo e apoio à pesquisa tecnológica, à inovação e ao empreendedorismo.

A combinação de marco regulatório inadequado, sistema tributário ultrapassado, sistemas educacionais de baixa qualidade e baixos investimentos no país, tanto por parte dos governos quanto da iniciativa privada, trava a competitividade brasileira no curto, médio e longo prazos. A produtividade deveria ser, em nossa opinião, a grande prioridade, uma vez que por ela passa uma série destes e outros aspectos que necessitam atenção imediata. A capacidade produtiva de um país é um dos fundamentos determinantes para avançar na competitividade. Quanto mais riqueza é obtida com a mesma quantidade de capital e com o mesmo número de trabalhadores, mais competitivo será o país. No caso brasileiro, o crescimento do emprego, tão necessário e tão citado como base dos avanços recentes, não tem gerado crescimento de riqueza na mesma proporção.

Em seu momento atual, o Brasil gera empregos mas não riqueza – a taxa de crescimento do emprego saiu do nível de 0,3% entre 2009 e 2010 para o nível de 2,1% entre 2010 e 2011. Estão sendo criados empregos que exigem menor qualificação do trabalhador, em setores que agregam pouco valor à economia. Ou seja, apesar dos óbvios benefícios econômicos e sociais que acompanham a positiva geração de postos de trabalhos estes não estão sendo adequados para a reestruturação e crescimento do setor produtivo brasileiro. Os dados do relatório mostram que é pequeno o número de profissionais com a qualificação necessária para transformar a simples pesquisa em um processo de desenvolvimento (os dados mais recentes apresentados, para 2007, mostram que o percentual de graduados em cursos de ciência e tecnologia no Brasil está em 15,2%, enquanto no resto do mundo esse percentual chega a 34,46%).

Além disso, os profissionais precisam desenvolver um comportamento empreendedor e inovador menos avesso ao risco, característica raramente encontrada no país. Uma pesquisa recente feita pela FDC com cerca de 220 gestores mostrou que aproximadamente 80% deles estão investindo em inovação para atender pressões competitivas do mercado. Apenas 9% estavam aplicando recursos no desenvolvimento de novos produtos e serviços que podem fazer a diferença nos mercados nacional e internacional.

Na busca pelo equilíbrio, a economia brasileira deverá alocar seus recursos de maneira mais eficiente. Para resultados mais imediatos, esses recursos precisam ser destinados, principalmente, à melhoria técnica no ensino do país, que carece de mão de obra qualificada, e na infraestrutura (tanto física como científica e tecnológica). Considerando o longo prazo, o investimento na educação básica é fundamental para garantia de melhorias na capacidade do capital humano que se forma, assim como na estruturação de um modelo de incentivos e cooperação voltado ao desenvolvimento e à inovação. No final dos anos 90, um estudo conduzido pelo Fórum Econômico Mundial perguntou que fatores determinavam a capacidade de um país de se tornar competitivo. Uma das principais conclusões foi a capacidade do país de se antecipar ao futuro. No Brasil o futuro é agora! Não podemos perdê-lo.

* Carlos Arruda é coordenador do Núcleo Bradesco de Inovação, diretor-executivo de Internacionalização e professor da Fundação Dom Cabral (FDC) na área de inovação e competitividade

* Fabiana Madsen é graduada em Ciências Econômicas pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e atua como pesquisadora no Núcleo Bradesco de Inovação e na equipe de competitividade da FDC

Como a história assombra o euro

Autor(es): Barry Eichengreen
O Estado de S. Paulo - 29/07/2012

BARRY EICHENGREEN - o autor é professor de Economia e Ciência Política da Universidade da Califórnia em Berkeley. Escreve a cada dois meses para o "Estado" - O Estado de S.Paulo Depois de passar boa parte da semana no Brasil, tive a impressão de que havia um único assunto na cabeça dos meus interlocutores: a crise na Europa. É difícil ser encorajador. Não há muito que o Brasil possa fazer para se isolar da crise na zona do euro. A saída da Grécia e a crescente intensidade das ondas de choque financeiro irradiadas a partir da Europa estão se aproximando, e não há muito que possamos fazer quanto a isso. O melhor conselho, que não chega a ser muito útil, é fechar bem as escotilhas, pois teremos mares agitados pela frente. Na verdade, minhas conversas no Brasil levantaram uma questão importante a respeito da crise na Europa. É claro que a Europa tem muitos problemas. O continente vive uma crise de endividamento, uma crise bancária, uma crise de competitividade e uma crise política. Mas alguns desses problemas têm sido desnecessariamente agravados pela falta de flexibilidade do Banco Central Europeu. O BCE tem sido lento no corte aos juros. Cortes nos juros implementados pelo BCE tornariam mais fácil o pagamento dos encargos das dívidas nacionais - principalmente se os cortes nos juros forem acompanhados pelo afrouxamento quantitativo, com o BCE comprando títulos no mercado secundário. Além disso, a relutância do BCE em fazer cortes manteve a taxa de câmbio do euro demasiadamente fortalecida. Um câmbio mais fraco é exatamente o que a Europa precisa para começar a controlar seus problemas. Suas exportações se tornariam mais competitivas. Sua economia começaria a crescer. O crescimento tornaria mais fácil a restauração da confiança entre os países e entre os eleitores, pré-requisito para a formação de um consenso quanto às medidas a serem adotadas. Por fim, um afrouxamento quantitativo adicional por parte do BCE faria com que os preços começassem a subir. O custo dos produtos no sul da Europa precisa cair em relação ao custo na Alemanha. Isso pode ser conseguido de maneira menos dolorosa por meio de uma inflação um pouco mais alta na Alemanha, somada a salários e preços mais estáveis no sul, em vez da estabilidade de salários e preços na Alemanha que implica a necessidade de cortes impossíveis nos países do sul. Mas o BCE se recusa a adotar tais medidas. Tudo que vimos nos últimos meses foi um corte aleatório nos juros e nenhuma medida adotada com relação ao afrouxamento quantitativo. A situação se tornou tão ruim que até o Fundo Monetário Internacional, instituição que não é conhecida exatamente por sua irresponsabilidade, deseja agora medidas de resposta mais agressivas por parte do BCE. Quando indagamos por que o BCE reluta tanto em agir, a maioria das pessoas aponta para o medo que os alemães têm da inflação. Depois da terrível experiência de hiperinflação vivida pelo país nos anos 20, os alemães temem a possibilidade de a inflação estar à espreita, aguardando o momento de atacar. Eles criaram o Banco Central Europeu à imagem do seu próprio BundesBank. Consequentemente, o BCE se recusa a fazer qualquer coisa que possa criar o mais remoto risco de inflação. Em particular, a Alemanha rejeita todas as propostas que pedem a compra de títulos do governo por parte do BCE, temendo que isto leve à impressão de ainda mais dinheiro, incentivando os governos a burlar as regras orçamentárias da UE. E, no ambiente atual, contexto em que é a Alemanha quem dá as cartas na economia europeia, os alemães impõem seu estilo aos demais. É neste ponto que a comparação com o Brasil se torna interessante. O Brasil também tem uma história de alta inflação - ainda mais próxima do que a da Alemanha, já que foi vivenciada em primeira mão pelos brasileiros ainda vivos. O Brasil tem também uma história de governos estaduais que burlam as regras orçamentárias. Mas o Banco Central do Brasil se sentiu livre para cortar os juros acentuadamente na desaceleração atual, como deveria fazer um banco central competente. Diferentemente do BCE, o BCB não foi inibido pela história de inflação do Brasil e seguiu práticas adequadas para uma instituição de seu tipo. Por que tal diferença? Suspeito que os alemães tenham tamanha fobia da inflação - a ponto de colocar em risco sua moeda única - porque a sabedoria popular alemã diz que a inflação causou o colapso da República de Weimar, o fim da democracia e a ascensão dos nazistas. Ninguém no Brasil deseja ver o retorno da inflação, mas a experiência inflacionária brasileira foi menos traumática, pois não levou ao colapso do sistema político. O único problema é que a sabedoria popular alemã está errada. Os estudos modernos concordam que não foi a hiperinflação dos anos 20, e sim a Grande Depressão e o alto desemprego dos anos 30 que fomentaram o apoio político aos nazistas. Ao exigir do BCE que apague imediatamente todas as fagulhas de inflação - algo que, no ambiente atual, só agrava o desemprego -, a Alemanha está portanto alimentando justamente o problema do extremismo político que o pais tanto teme. Não será fácil contrariar a sabedoria popular alemã, algo que, por sua vez, não nos dá muita esperança de uma solução amena para a crise da zona do euro. Mas, no Brasil, a situação é mais alegre. Os brasileiros aprenderam a lição certa com sua própria crise inflacionária. Fortalecer as regras fiscais sob as quais os governos estaduais operam. Dar ao banco central independência estatutária. E então se afastar para que o banco central possa fazer seu trabalho. /TRADUÇÃO DE AUGUSTO CALIL

"Dossiê Golpe de 64" saiu da gaveta

Élio Gaspari - Élio Gaspari
O Globo - 29/07/2012

Está chegando às bancas a edição de agosto da "Revista de História" da Biblioteca Nacional. Nela desfaz-se um mistério: o que havia nas 22 páginas do "Dossiê - O Golpe de 1964" que foram retiradas da edição de abril, por decisão comunicada em nome do Conselho Editorial da revista, depois de elas estarem prontas, editadas e diagramadas? Resposta: Nada além de um trabalho competente de jornalistas e professores.

O "Dossiê", organizado por Bruno Garcia e Nashla Dahás, foi publicado por decisão de todos os profissionais da redação (cinco jornalistas e 12 pesquisadores). Aparece com três meses de atraso, mas tira da revista a macumba de ter engavetado a História.

Há no "Dossiê" cinco artigos, dos professores Daniel Aarão Reis (UFF), João Roberto Martins Filho (UFSCar), Jorge Ferreira (UFF), Luis Antonio Dias (PUC-SP), e Mateus Henrique de Faria Pereira (UFMG). São textos de historiadores, só isso. Não revelam onde estão desaparecidos da ditadura, nem quem deu a ordem para matar todos os militantes do PCdoB que estavam no Araguaia a partir de outubro de 1973.

Ainda há gente que se inquieta com 1964. É compreensível. Aarão Reis ensina em seu artigo que "é inútil esconder a participação de amplos segmentos da população no movimento que levou à instalação da ditadura em 1964. É como tapar o sol com a peneira."

Resta a pergunta das razões que levaram conselheiros a se associar, ou verem-se associados, ao engavetamento. Eram oito historiadores, sete dos quais professores de universidades. O conselho estava envolvido num conflito com a entidade que edita a revista, a Sociedade Amigos da Biblioteca Nacional. Em meados de junho, ele demitiu-se. O conflito nada teve a ver com o conteúdo da publicação. Em abril a revista circularia com artigos que relembrariam um fato histórico ocorrido há 48 anos. Saiu com um levantamento sobre mercenários. Em maio, mês da Abolição, a capa foi para a princesa Isabel.

A redação deu final adequado a uma história que deixaria mal uma revista chamada História.

À época do engavetamento do "Dossiê", era a seguinte a composição do conselho editorial: Alberto da Costa e Silva (presidente), José Murilo de Carvalho (UFRJ), Lília Moritz Schwarcz (USP), João José Reis (UFBA), Laura de Melo e Souza (USP), Caio César Boschi (PUC-BH), Ricardo Benzaquen (PUC- RJ), Ronaldo Vainfas (UFF), Marieta Moraes Ferreira (CPDOC-FGV) e Luciano Figueiredo (UFF).

Lula

O comissariado petista diz que Lula vai bem, em relação a seja lá o que for. Apesar disso, reconhece que, com a chegada de agosto, as coisas não evoluíram como se previa.

Em outubro passado, quando o câncer de Lula foi diagnosticado, a doutora Dilma previu que no carnaval ele desfilaria com os Gaviões da Fiel. Em abril, Lula achava que em duas semanas estaria nas campanhas de Fernando Haddad e Luiz Marinho.

José Dirceu

Na quarta-feira, a decisão de José Dirceu era a de não ocupar a tribuna do Supremo para se defender. A tarefa ficaria com seu advogado.

O conde Ciano

Para quem gosta de histórias da Segunda Guerra, do fascismo ou de espertalhões, saiu um bom livro. É "O Conde Ciano - Sombra de Mussolini", do jornalista americano Ray Moseley.

Galeazzo Ciano era um nobre italiano, boa-pinta e vigarista. Casou-se com a filha do ditador Benito Mussolini e tornou-se ministro das Relações Exteriores aos 33 anos.

Em 1943, traiu e ajudou a depor o sogro. Foi capturado pelos fascistas, julgado e condenado à morte, junto com quatro outros hierarcas. Na hora de ser passado nas armas, escreveu a melhor página de sua biografia (e do livro). Primeiro, arrumou a disposição dos colegas de viagem de acordo com o cerimonial da precedência, como se acomodasse convidados para um jantar. Recusou a venda e, sentado de costas para o pelotão de fuzilamento, na hora certa virou-se e encarou-o.

A tradução é do general Gleuber Vieira, comandante do Exército durante o tucanato.

FILME PARA O STF
Um curioso sugere que os ministros do Supremo aproveitem as vésperas do julgamento do mensalão para ver o filme "Dois são Culpados" ("La Glaive et la Balance"), do francês André Cayatte. É de 1963, difícil de achar. Dois sujeitos sequestraram um menino e, perseguidos pela polícia, esconderam-se num farol. Quando o prédio foi invadido o menino estava morto e havia nele três pessoas. Durante o julgamento os advogados dos três sustentaram que seu cliente estava lá quando chegaram os criminosos. Foram convincentes, e todos os réus foram absolvidos. Terminado o julgamento, entraram num camburão. A choldra queimou o carro onde estavam Anthony Perkins, Jean Claude Brialy e Renato Salvatori. Assaram os culpados e o inocente.

TUNGA
O comissariado promete um reordenamento tributário. Poderia dar atenção a um capítulo irracional e retrógrado da barafunda de tungas que impõem aos contribuintes.

Um cidadão quer ver um filme que ainda não chegou ao Brasil e resolve importar um DVD pela Amazon. Ele custa US$ 24, mais US$ 17 pelo frete da caixinha. Em cima do total de US$ 42 a empresa cobra, adiantado, US$ 40 de impostos brasileiros. O pobre-diabo toma uma tunga equivalente ao valor da compra.

O problema é que outro cidadão pode comprar por R$ 400 um aparelho Apple TV, ou trazê-lo na mala, comprado nos Estados Unidos, por US$ 99. Com essa máquina aluga o filme no iTunes e paga US$ 5. Se quisesse comprá-lo, baixaria a peça por US$ 20, a quarta parte do que pagou a primeira vítima.

Proteger a indústria nacional de distribuição de DVDs é uma coisa. Punir os contribuintes com tamanha tributação é outra. Os impostecas nacionais ainda não descobriram o alcance democratizador do comércio eletrônico. Como diziam que os iPads não eram computadores porque não tinham teclado, são capazes de tudo.

O CONDE CIANO
Para quem gosta de histórias da Segunda Guerra, do fascismo ou de espertalhões, saiu um bom livro. É "O Conde Ciano - Sombra de Mussolini", do jornalista americano Ray Moseley.

Galeazzo Ciano era um nobre italiano, boa-pinta e vigarista. Casou-se com a filha do ditador Benito Mussolini e tornou-se ministro das Relações Exteriores aos 33 anos.

Em 1943 traiu e ajudou a depor o sogro. Foi capturado pelos fascistas, julgado e condenado à morte, junto com quatro outros hierarcas. Na hora de ser passado nas armas escreveu a melhor página de sua biografia (e do livro). Primeiro arrumou a disposição dos colegas de viagem de acordo com o cerimonial da precedência, como se acomodasse convidados para um jantar. Recusou a venda e, sentado de costas para o pelotão de fuzilamento, na hora certa virou-se e encarou-o.

A tradução é do general Gleuber Vieira, comandante do Exército durante o tucanato.

O PLANALTO INCENTIVA MAIS UMA GREVE

Desde 18 de junho há auditores da Receita Federal namorando uma greve. Por enquanto, fazem operações-padrão e reduzem o lançamento de cobranças. O sindicato da categoria não gosta da ideia, e o movimento não empolgou os servidores.

Na quarta-feira os sábios do Planalto ameaçaram substituir eventuais grevistas com funcionários das fazendas estaduais. A ideia não tem base legal sólida e serve apenas para acirrar os ânimos. Em 2002 uma hierarca insultou os auditores dizendo que não precisavam de melhorias porque entre eles havia muitos corruptos. Deu fôlego à greve.

Num caso desses, a Receita, silenciosamente, mexe nos canais e reprograma o índice de fiscalização, sem anúncios marqueteiros que apenas estimulam contrabandistas e larápios.

A ideia de terceirizar grevistas deu certo nos Estados Unidos em 1981, quando pararam os controladores de voo. O presidente Ronald Reagan convocou militares e interessados nos postos, desempregou 11 mil, quebrou o movimento e destruiu o sindicato. Dilma Rousseff não é Ronald Reagan.

Resgate histórico

Autor(es): Ana Dubeux
Correio Braziliense - 29/07/2012

O Brasil sempre foi um país condenado ao olhar impiedoso daqueles que o enxergam como o reino do jeitinho, da impunidade, da tibieza de suas instituições. Junto ao crescimento que experimenta na seara econômica e até no jogo político democrático, tem tido a chance de reinventar sua imagem. Os esforços para abrir arquivos da ditadura e instituir a comissão da verdade estão aí para derrubar mais alguns obstáculos nesse caminho. Nesta semana, no entanto, será estendido o tapete vermelho para essa passagem civilizatória. O cidadão acompanhará o julgamento dos réus do chamado mensalão, o escândalo que contaminou o fim do primeiro mandato de Lula e colocou 38 pessoas diante das acusações de formação de quadrilha, peculato, corrupção ativa e passiva, gestão fraudulenta, lavagem de dinheiro e evasão de divisas. Não é pouca coisa, principalmente porque significa o desfecho do caso, independentemente do resultado.

O maior julgamento da República levará o brasileiro a uma viagem no tempo, ao fechamento de um longo período de sete anos e, principalmente, o resgatará de um esquecimento, tão comum quando se trata de crimes políticos. Nesse período, as pessoas nasceram, morreram, tiveram

filhos ou os viram partir, casaram-se, viajaram, trabalharam, compraram a casa própria e tocaram a vida sem que a lembrança de Delúbio Soares, Marcos Valério, Roberto Jefferson e companhia limitada queimasse uma só de suas pestanas. Houve, sim, a decepção, mas o show continua.

Passaram a indignação coletiva, as eleições que deram a Lula seu segundo mandato, as outras eleições que colocaram a sucessora de Lula como a primeira mulher a presidir o Brasil. Dilma adoeceu e se curou, Lula adoeceu e se recupera, o delator Jefferson enfrenta problemas de saúde e não estará no Supremo Tribunal Federal durante o longo julgamento. Passaram bois e boiadas, inclusive sobre a cabeça dos brasilienses, que dormiram um dia e acordaram de frente com uma senhora encrenca chamada Pandora.

O Brasil continuou perdendo gente para o trânsito, para as doenças crônicas, para as drogas. Perdeu também o fio condutor para uma educação de qualidade, enquanto a classe política discute se o caso mensalão, agora novamente no foco, vai ou não influenciar nas próximas eleições. Mas é bom saber que desta vez não perderá a memória. O julgamento retoma, resgata uma parte da história brasileira, que poderá ser contada com início, meio e fim.

Especial: Os brasileiros que não estudam

Brasil ainda tem 1 milhão sem escola
Autor(es): agência o globo:Carla Rocha Antônio Gois
O Globo - 30/07/2012

Dados do IBGE revelam excluídos educacionais até em estados ricos

São apenas cinco letras, mas rabiscá-las é um tremendo desafio. Com um caderno sobre as pernas, Mário, de 11 anos, quase desenha seu nome, a única palavra que sabe escrever, manuseando o lápis sem intimidade. O nome é fictício, a história, real. A deslumbrante paisagem que se vê da casa do menino, que só entrou para a escola há cerca de um mês, revela um problema que ainda persiste mesmo nos estados mais ricos. O franzino Mário vive seu drama particular no Morro do Vidigal, em São Conrado, debruçado sobre os bairros de maior renda do Rio.

Os números do Censo do IBGE mostram que, apesar de o problema ser mais grave nas regiões Norte e Nordeste, nenhum estado conseguiu até hoje incluir todas as crianças de 6 a 14 anos na escola. Esta população de não estudantes representa 3% do total da faixa etária. Pode parecer um percentual pequeno, mas é grave quando se considera que é quase um milhão de crianças que ainda não têm garantido um de seus direitos mais básicos, previsto pela Constituição de 1988: estudar. Se a esse grupo forem incorporados as crianças de 4 e 5 anos e os jovens de 15 a 17 (que passam a fazer parte da faixa etária de escolaridade obrigatória a partir de 2016), o número aumenta para 3,8 milhões, ou 8% do total.

Tabulações feitas pelo GLOBO nos microdados do Censo mostram que o problema é maior entre os mais pobres e crianças com algum tipo de deficiência. Os números também revelam que a maioria (62%) das crianças que não estudam dos 6 aos 14 chegou um dia a frequentar a escola, mas abandonou os estudos. O problema é ainda mais grave se consideradas as faixas etárias de 4 e 5 anos e de 15 a 17, que desde 2009 passaram a ser também obrigatórias, mas com prazo para adequação dos sistemas até 2016.

As razões mais citadas por especialistas para isso são falta de interesse, repetência, gravidez precoce e necessidade de trabalhar.

Mas há situações difíceis de entender. Como a de Mário (nome fictício). No Morro do Vidigal, há uma creche municipal e uma escola, a poucos metros da casa dele. Tímido, ele é um menino saudável, apto a aprender e que não esconde de ninguém que queria muito, muito estudar.

- Agora eu estou feliz - sorri e mais não diz o menino, que não conhece sequer o "i", uma das vogais de seu nome (o verdadeiro também tem a letra). Ele revela apenas o que pretende fazer com os conhecimentos que começa a adquirir com seu primeiro professor. - Quero ler jornal e gibi.

Ex-representante da Unesco no Brasil e doutor em Educação pela Universidade de Stanford, o assessor internacional para a área de educação, Jorge Werthein, diz que o primeiro passo, nada fácil, é identificar essas crianças e adolescentes.

- O Brasil é um país de contrastes. Há estados importantes com uma grande periferia urbana e muitas desigualdades econômicas. Há estados com uma área rural significativa que sofrem com a falta de escolas. Num país continental, é uma tarefa árdua chegar a essas crianças e adolescentes por estado, por capital, por região metropolitana. Mas é preciso achá-los e depois convencê-los a ingressar ou a voltar para a escola - diz.

- Depois, nós temos que repensar a escola para que ela seja um espaço não apenas prazeroso, mas em que os alunos sintam que estão aprendendo. Uma escola ruim em qualquer lugar do mundo expulsa os alunos, com repetências e abandono. Deixa para eles a mensagem de que não são capazes, o que marca de forma brutal meninos e meninas - completa Werthein.

- Houve uma evolução inegável nos últimos dez anos. Mas ainda há muita criança fora da escola, situação agravada pelas desigualdades. Entre 4 e 5 anos, há 83% estudando no Sudeste, o que ainda é ruim, mas pior é haver só 69% dentro de sala de aula no Norte - afirma Andrea Bergamaschi, do movimento Todos pela Educação. - Para reverter este quadro, precisamos de políticas públicas cirúrgicas, específicas para cada situação.

A educação em ano eleitoral

Autor(es): Renato Janine Ribeiro
Valor Econômico - 30/07/2012

Há vinte anos, quando o ministro Murílio Hingel assumiu a pasta da Educação no governo Itamar Franco, começou a mudar a prioridade na educação brasileira. Com boas intenções, a Constituição de 1988 incumbira o governo central de manter o ensino superior, com um número que depois aumentou de universidades federais, e atribuíra a Estados e municípios o ensino básico. Traduzindo, a União paga as universidades, gastando nelas três quartos do seu orçamento com a educação, enquanto os municípios mantêm os primeiros nove anos de escolaridade (os antigos grupo e ginásio, depois segundo grau, hoje ensino fundamental) e os Estados apoiam esse esforço, respondendo também pelo ensino médio, antigo colegial. Há exceções, substanciais inclusive, mas o desenho constitucional é esse. A boa intenção foi pensar que, colocando a educação mais importante, a de crianças e adolescentes, mais perto do eleitor, ela iria melhorar. O cidadão controlaria de perto a educação dos seis aos dezoito anos, ou mesmo desde as creches.

Ledo engano. Daí, surgiram inúmeros problemas. Muitos prefeitos e governadores não são capazes de dirigir sistemas educacionais - quanto mais, de conceber mudanças que valorizem o professor e estimulem os alunos. Na verdade, os maiores avanços da educação básica nestes vinte anos, em que pesem as boas intenções de Murilio Hingel, Paulo Renato de Souza e Fernando Haddad, os ministros mais duradouros no cargo, foram apenas dois. Primeiro: priorizar na pauta de intenções do governo a educação básica. Por ora, é uma intenção. Não é uma realização. Mas já é positivo aumentar a convicção de que essa educação é a mais importante. Infelizmente, falta as famílias assumirem isso.

Segundo ganho: a decisão de avaliar a educação. E a percepção de que, para tanto, precisamos de indicadores bons. Isso pode parecer óbvio. Como melhorar a educação, sem uma avaliação constante? Mas o que não é óbvio é o modo de avaliar. Isso é muito difícil. Podemos, sim, fazer uma avaliação bastante básica dela - ver como as crianças menores se saem nas operações fundamentais da matemática e no português. Meu filho, aos oito anos, fez a Provinha Brasil, que eu baixei para ele. Acertou 23 das 24 questões. Uma amiguinha dele teve dificuldades com a última pergunta, que era como se escreve "quintal". Aliás, aproveito para recomendar aos pais que procurem, no site do INEP, as edições anteriores da Provinha e apliquem aos filhos de 7 a 9 anos. É uma brincadeira, mas fará que as famílias se envolvam mais com a educação das crianças. Voltarei a este ponto. Mas lembro que, à medida que a pessoa cresce, é cada vez mais difícil avaliar, e a regra número 1 é que a avaliação não pode inibir iniciativas criativas e emancipadoras.

Use seu voto para melhorar a educação básica

A avaliação dos sistemas educacionais foi um tema que dividiu, por muito tempo, o PSDB - que a defendia e implantou em escala federal - e o PT, que fechava com os sindicatos de professores na resistência a ela. Entendia o PT, e hoje entendem os sindicatos docentes, que a avaliação é injusta com os professores, punindo-os por deficiências do sistema como um todo e só recompensando alguns deles, os melhores. Mas não há como melhorar a educação, inclusive a remuneração dos profissionais, sem exigir deles um bom desempenho. Sempre fui defensor da qualidade. Achei muito bom que, no governo Lula, o PT mudasse de posição a respeito e, inclusive, aprimorasse os indicadores educacionais. (Vários sindicatos continuam contrários, o que hoje leva parte deles a apoiar os partidos ditos de extrema-esquerda).

Recomendo aos pais: olhem no INEP a prova adequada à idade do filho, seja Provinha Brasil, Prova Brasil ou Enem. Peçam ao filho para fazê-la e o acompanhem. E por quê? Não é só para saber como está seu filho, embora isso seja fundamental. Mas é, sobretudo, porque a maior deficiência do ensino brasileiro é que a sociedade não fez, dele, sua prioridade. Muitos consultores e jornalistas dizem que melhorar a educação é condição para o país se desenvolver. Mas sejamos claros. A família pode ajudar na segurança, na saúde e na educação. Pode ensinar os filhos a serem honestos e a se acautelarem dos criminosos. Deve educá-los a ter hábitos higiênicos e cuidar da saúde. Mas não pode substituir a polícia, o médico - nem, aliás, o professor. Só que na educação, a família pode fazer muito mais do que faz. Pode, numa palavra, mostrar que a educação é importante.

Exemplo negativo: um conhecido meu, numa crise econômica, mudou os filhos de escola porque a mensalidade estava cara. Só por isso. No mês seguinte, trocou o carro seu e da mulher. Que sinal ele deu para os filhos? Não precisa responder. Mas foi pior do que aquilo que mil governos ruins podem fazer.

Sugestão nestas eleições: vejam o que os candidatos a prefeito propõem para a educação. Verifiquem se falam em merenda escolar, transporte, pintura de escolas. Se falarem só nisso ou principalmente nisso, fujam! Provavelmente, eles não têm ideia do que é a educação. Claro que podem - e devem - falar desses pontos, mas o principal é a qualidade do ensino. Vejam também se vão falar em tablets, internet e coisas que tais. Alerta! Esses instrumentos só são úteis se houver alguém que saiba usá-los. Confiram se falam em cursos para qualificar os professores, em aumento de salário vinculado a cobrança de desempenho, e em incentivo aos alunos para que tenham prazer estudando. Aprofundem estes pontos, para ver se eles entendem do que estão falando ou apenas repetem mantras de marqueteiros. Porque, se entenderem disso, podem ser prefeitos bons para a educação.

Educação e competição

Autor(es): Jairo Martins
Correio Braziliense - 30/07/2012

JAIRO MARTINS
Superintendente-geral da Fundação Nacional da Qualidade (FNQ)

Nas últimas décadas, o Brasil vem acumulando conquistas políticas, sociais e econômicas, saindo da condição de subdesenvolvido para o grupo das nações emergentes. Ao dominar a superinflação e conquistar a estabilidade da moeda, o país iniciou a preparação do alicerce para que iniciasse a trajetória rumo ao crescimento. Enquanto países, até pouco tempo vistos como prósperos, mergulham num estado de incerteza em relação ao futuro, a economia brasileira demonstra que adquiriu solidez, tornando-se grande valor para a sociedade.

Para poder aproveitar o bom momento econômico e dar continuidade ao crescimento, o Brasil precisa se desvencilhar dos antigos entraves, que atrapalham a competitividade, a eficiência e o desenvolvimento do país. Um dos principais gargalos diz respeito ao sistema educacional, que não tem conseguido se adequar aos novos desafios e constantes mudanças no âmbito dos negócios, a fim de prover profissionais qualificados e capazes de atender as necessidades do mercado. Em função desse cenário, as empresas atuam globalmente para encontrar e tentar reter o melhor talento.

Pesquisa realizada pela Fundação Nacional da Qualidade (FNQ) com executivos brasileiros, a partir da reprodução da McKinsey Global Survey 2010, mostra que a melhoria na educação, a produtividade do trabalho e a gestão de talentos estão entre as principais forças de transformação que podem influenciar nos resultados das organizações. Quando comparadas à importância para os negócios e às ações efetivas, 94% dos entrevistados confirmam a preocupação com essas questões, enquanto 80% adotam medidas ativas para minimizar a lacuna e aperfeiçoar a gestão de talentos.

A carência de profissionais qualificados é nítida, especialmente como resultado dos baixos investimentos estatais na área da educação e da falta de integração das três esferas — governo, escolas e empresas — em prol da melhoria da qualidade do modelo de ensino no país.

Outro estudo realizado com 30 empresas sediadas no país pela PricewaterhouseCoopers (PwC) Brasil, em 2011, revela que a contratação de executivos com o perfil desejado para atender aos objetivos estratégicos é o mais difícil entre os diferentes níveis hierárquicos, assim como os de gestão de pesquisas e desenvolvimento (P&D). Encontrar profissionais técnicos especializados tem sido outro desafio para a gestão de pessoas.

Diante dessas dificuldades, os programas de retenção de talentos e desenvolvimento de profissionais estão entre os maiores focos das organizações, superando os da contratação e firmando-se como as chaves para consolidar o sucesso das empresas no mercado. Por isso, no cenário de transformações, a gestão de pessoas ganha especial importância e torna-se uma das principais estratégias de muitas companhias que buscam alternativas para suprir as necessidades de qualificação profissional e ganhar competitividade no século 21.

Assim, o mundo corporativo passa a ser um dos melhores ambientes para formar capital humano, com a implantação de práticas inovadoras e a criação de programas próprios de capacitação, treinamento e desenvolvimento de talentos e novas lideranças.

Mesmo saindo da sua vocação primária, de prover produtos e serviços competitivos, as empresas se juntam aos governos e às escolas na busca de solução para suprir a lacuna educacional, compreendendo a importância de sua atuação em prol de grandes temas essenciais ao desenvolvimento do Brasil. Cooperar e compartilhar boas práticas e iniciativas de quem já vem exercendo seu papel na formação de profissionais desponta, enfim, como um dos caminhos mais eficazes para mobilizar as demais organizações, incentivá-las a adotar ações gerenciais efetivas e comprovar que o conhecimento profissional pode contribuir para o crescimento e para a inovação corporativa, garantindo a continuidade da expansão econômica brasileira.