sexta-feira, 29 de junho de 2012

Demagogia na educação

O Estado de S. Paulo - 29/06/2012

Às vésperas do início do recesso legislativo e já com as atenções voltadas para a campanha eleitoral, a comissão especial da Câmara dos Deputados encarregada de examinar o projeto do novo Plano Nacional de Educação (PNE) aprovou em votação simbólica, e em clima de assembleia estudantil, a emenda que obriga o poder público a destinar 10% do Produto Interno Bruto (PIB) para a área de educação nos próximos dez anos.

Atualmente, o País gasta 5% do PIB com as redes públicas de ensino básico, médio, técnico e superior - o que está na média dos países desenvolvidos. Em 2003, o gasto era de 3,9% do PIB, tendo passado para 4,3%, em 2007; e para 4,7%, em 2009. Elaborado pelo governo Lula, o projeto do PNE previa um gasto de 7% do PIB, até 2020. Mas, desde que o projeto chegou ao Congresso, em 2010, movimentos sociais, ONGs e entidades de estudantes e de professores pleiteavam 7,5% do PIB. Essas entidades tiveram o apoio de parlamentares governistas, que - contrariando o Palácio do Planalto - apresentaram emendas com o objetivo de destinar ao setor educacional metade dos royalties do pré-sal.

Alegando que o Executivo ampliou as verbas para o setor na última década e que os investimentos na exploração da camada do pré-sal só terão retorno a longo prazo, o governo resistiu a essa reivindicação. Mas, pressionado pelas corporações discentes e docentes, que durante anos estiveram sob controle do PT, o Palácio do Planalto negociou um aumento de 7% para 7,5% do PIB. A elevação de 0,5% do PIB no orçamento da educação pública representa R$ 25 bilhões a mais em investimentos.

Além disso, no decorrer das negociações, o relator do projeto do PNE, Ângelo Vanhoni (PT-PR), cedeu às pressões de colegas que invocam a necessidade de financiar a implantação do regime de tempo integral na rede pública de ensino fundamental e propôs o patamar de 8%. A proposta contrariou a Casa Civil e o Ministério da Fazenda. Nas últimas semanas, os movimentos sociais, ONGs e entidades de estudantes e docentes aumentaram as pressões e, sob o pretexto de valorizar o magistério público e triplicar a oferta de matrículas da educação profissional e técnica de nível médio, a comissão especial aprovou uma emenda do deputado Paulo Santiago (PDT-PE), fixando em 10% do PIB o gasto mínimo do poder público em educação. Os parlamentares também fizeram outras mudanças no projeto do PNE, que tem validade decenal. Eles anteciparam para o sexto ano de vigência do plano a meta de igualar o rendimento médio dos professores da rede pública de ensino básico com o dos docentes dos demais níveis de ensino. O projeto previa a equiparação no décimo ano. E determinara a aprovação, em um ano, de uma lei de responsabilidade educacional, para assegurar padrões de qualidade em cada sistema de ensino.

O problema da educação brasileira, contudo, não é de escassez de recursos. É, sim, de gestão perdulária - como foi evidenciado pelo Reuni, o programa de expansão do ensino superior do governo Lula, que custou R$ 4 bilhões. Sem uma avaliação cuidadosa do setor, foram criadas escolas onde não havia demanda, admitidos alunos antes de existir instalações adequadas, criados cursos noturnos nas universidades federais e contratados mais docentes sem que houvesse candidatos preparados para as vagas abertas. Nas discussões sobre o PNE, os deputados deixaram de lado este problema e outro tão ou mais importante - a impossibilidade de o poder público continuar aumentando seus gastos em ensino sem modificar os objetivos e as formas de atuação do sistema de ensino.

Terminada a votação, o MEC divulgou nota afirmando que, se for obrigado a gastar 10% do PIB em educação, o governo terá de tirar R$ 85 bilhões dos outros Ministérios da área social.

O projeto foi aprovado na comissão em caráter definitivo e só passa pelo plenário da Câmara se houver recurso. No Senado, o Planalto espera que o projeto seja votado após as eleições, quando os senadores poderão agir mais responsavelmente do que os deputados.

As escolas não são públicas. E privatizar não resolver

Autor(es): Gustavo Ioschpe
Veja - 25/06/2012

Quando escrevi sobre a inércia do sistema de educação pública brasileira, no mês passado, a turma da direita comentou que o problema não e simplesmente da área educacional, e sim do setor público como um todo. A única maneira de solucioná-lo seria deixar o problema nas mãos da iniciativa privada, que é mais competente, para que assim pudéssemos dar o salto educacional de que o país precisa. Já os esquerdistas viram no artigo mais uma confirmação de que eu, como peão subordinado aos interesses do capitalismo, estou armando o terreno para a defesa da privatização de todo o sistema de educação pública brasileira, como parte do malévolo plano de manter as classes baixas em sua secular ignorância e opressão.

Continuando na minha senda de alienar todos os interesses e grupos organizados, lamento informar que discordo de ambos. Deixo de lado os argumentos políticos, sobre a possibilidade de uma privatização em larga escala, e também os ideológico-patrióticos, sobre a desejabilidade dessa iniciativa, para falar apenas das questões técnicas: não acredito que a privatização do sistema educacional teria impactos significativos sobre a qualidade do ensino.

Porque a minha análise do problema educacional brasileiro é que já temos, em linhas gerais (sempre há sobras e excessos em um país enorme e descentralizado como o nosso), tanto o financiamento quanto o arcabouço institucional para dispormos de uma educação de qualidade. Os melhores sistemas educacionais do mundo gastam basicamente o mesmo que nós e também têm a maioria de suas matrículas em escolas públicas, como nós. O que falta para iniciarmos a melhoria é demanda popular por uma educação de qualidade. Sua ausência gera falta de ação da classe política, dos gestores de escolas e dos professores.

Ter uma boa rede de escolas dá trabalho. Muito trabalho. Constante e ao longo de muitos anos. Os professores vão precisar trabalhar mais, as universidades vão precisar reformular seus cursos e cobrar resultados dos alunos de pedagogia e licenciaturas, os diretores terão de liderar, monitorar e prestar contas, as secretarias de educação precisarão estar em cima de suas redes, os alunos terão de estudar e ler mais e os pais precisarão se engajar mais com as escolas de seus filhos e com seu estudo em casa. E isso só acontece quando há vontade de todos. Muita vontade, muita cobrança. E, ainda que eu defenda intransigentemente o direito do pai com recursos de matricular seu filho onde bem entenda, e preciso reconhecer que privatizar o sistema não vai gerar essa cobrança de que precisamos.

Uma escola privada de massas precisaria ser financiada pelo governo, já que a maioria dos pais não teria recursos para custear a escola e o sistema bancário é ineficiente na concessão de créditos a alunos de educação básica. O governo pode transferir o dinheiro diretamente aos donos das escolas, como se faz em muitos países europeus e nas escolas charter americanas, ou aos pais dos alunos, através de vouchers, como é ou foi feito no Chile, em alguns estados americanos, na Nova Zelândia e na Colômbia.

Ora, se o dinheiro não vem do bolso do pai, e se esse pai vai continuar tão ignorante sobre como avaliar uma educação de qualidade quanto antes, por que imaginar que ele vai se engajar pela educação do filho de maneira diferente daquela que faz hoje? E, se o dono da escola sabe que poderá continuar engabelando sua clientela da mesma maneira que políticos, diretores e professores o fazem hoje, por que haveria de se esforçar para dar uma educação de ponta? Não faria muito sentido.

A experiência confirma a lógica. O resumo das pesquisas é que o aprendizado dos alunos das escolas charter não difere do daqueles matriculados em escolas públicas tradicionais. Os pais de alunos que estudam nessas escolas, onde há uma loteria para sortear vagas, estão mais satisfeitos com a educação dos filhos do que os pais dos alunos que tiveram de colocar seus filhos nas escolas públicas, mesmo quando o aprendizado das crianças nos dois tipos de escola é indistinguível. Parece, portanto, que o simples fato de ganhar na loteria e conseguir colocar o filho em uma escola privada já gera contentamento. Não apenas não há diferença de qualidade, como a escola charter deixa o pai ainda mais acomodado do que antes, na ilusão de que seus problemas acabaram por ter colocado seu filho em escola privada. Um sistema semelhante no Brasil seria ainda mais desastroso. Outro estudo mostra que não há ganhos permanentes de disciplina ou motivação do aluno que passa por uma escola charter: se ele retorna para uma escola pública, passa a ter os mesmos problemas de comportamento e absenteísmo.

O sistema de vouchers foi mais estudado no Chile. O regime de Pinochet manteve as escolas públicas e privadas, e adicionou a elas um híbrido, a chamada escuela subvencionada, uma escola privada financiada através de vouchers do poder público. Estudos que levaram em conta o nível socioe-conômico dos alunos mostraram que a diferença entre as escolas era explicável pelo status dos pais, não pelo fato de ser pública ou privada. Outro estudo mostrou que os vouchers haviam simplesmente mudado a distribuição dos alunos nas escolas: como as escudas subvencionadas podiam aplicar testes de seleção e, a partir da década de 90, cobrar uma "ajuda de custo” dos pais, o que elas fizeram foi retirar das escolas públicas os alunos mais capacitados e mais ambiciosos. Para o país como um todo, o efeito foi nulo. Quanto aos pais, viu-se que o mais importante na escolha da escola do filho era a distância de casa, não a qualidade ou a proposta pedagógica. (A íntegra dos estudos está em twitter.com/gioschpe.)

Toda essa discussão, no fundo, é irrelevante, porque as escolas brasileiras não são privatizáveis. Por uma questão conceitual. Porque só pode ser privatizado algo que é público, e as escolas brasileiras não são públicas, se por público entendemos “relativo ou pertencente a um povo, a uma coletividade" (Honaiss). As escolas ditas públicas no Brasil são, em alguns casos, escolas estatais, que estão lá para servir os desígnios dos ocupantes do poder político. Na maioria dos casos, são escolas corporativas, cuja função principal é defender os interesses de seus professores e funcionários. Apenas em raros casos é que elas estão focadas nos interesses de seu alunado, seu público.

Privatizar a escola brasileira não resolve. O que precisamos fazer é tomá-la efetivamente pública, de modo que ela passe a atender às necessidades do país e dos alunos que a freqüentam. Precisamos parar de pensar nossa educação em termos ideológicos ou mágicos, acreditando em balas de prata, planos nacionais. cláusulas de financiamento ou outras soluções mirabolantes. Não há decreto que resolva. A máquina é complexa e cheia de enguiços. Ou arregaçamos as mangas e mexemos nas engrenagens defeituosas, ou continuaremos nos lamentando.

sexta-feira, 22 de junho de 2012

STF deve analisar constitucionalidade do ensino religioso no Brasil



Conectas e organizações parceiras defendem que educação precisa ser laica


21.03.12

Organizações ligadas a direitos humanos, entre elas a Conectas, e educacionais foram aceitas como parte integrante no processo que tramita no Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a constitucionalidade das atuais formas de oferta de ensino religioso nas escolas públicas brasileiras.

A Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 4.439, proposta pela Procuradoria Geral da República (PGR), vai contra o trecho do acordo entre o Estado brasileiro e a Santa Sé que prevê "ensino católico e de outras confissões" na rede pública de ensino do país (artigo 11, §1º, do Decreto n. 7.107/2010). A PGR pede ainda que o Supremo interprete o artigo 33 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB), no sentido de proibir o ensino confessional, interconfessional ou ecumênico.

Segundo a PGR, “a única forma de compatibilizar o caráter laico do Estado brasileiro com o ensino religioso nas escolas públicas é através da adoção do modelo não-confessional, em que o conteúdo programático da disciplina consiste na exposição das doutrinas, das práticas, da história e de dimensões sociais das diferentes religiões – bem como de posições não-religiosas, como o ateísmo e o agnosticismo – sem qualquer tomada de partido por parte dos educadores”. Estes, de acordo com a PGR, devem ser profissionais regulares da rede, não vinculados formalmente a crenças ou igrejas.

O ingresso das organizações Conectas Diretos Humanos, Ação Educativa, Ecos - Comunicação em Sexualidade, Comitê Latino-Americano e do Caribe para a Defesa dos Direitos da Mulher e a Relatoria Nacional para o Direito à Educação, da Plataforma Dhescas Brasil, no caso se deu pela figura jurídica do amicus curiae.

Elas entendem que a educação pública deve respeitar o princípio da laicidade do Estado e, por isso, defendem o posicionamento da PGR em relação à declaração da inconstitucionalidade do trecho “católico e de outras confissões”. Requerem, complementarmente, a ampliação do debate sobre a interpretação do dispositivo da Constituição Federal que prevê o ensino religioso (art.210, 1°), no sentido de delimitar o alcance das normas que regulamentam esse artigo (tanto a LDB como as leis estaduais e municipais).

Posição das organizações

Segundo as organizações, além dos aspectos questionados pela PGR há um conjunto de previsões legais que extrapolam os limites postos na Constituição (art.19, inciso I, e art.210, §1°) e que merecem ser apreciados pelo STF no julgamento ADI 4.439. Em relação ao texto da LDB, questionam a previsão de que o ensino religioso nas escolas públicas “é parte integrante da formação básica do cidadão” (art.33, caput) e a determinação de que os poderes públicos “ouvirão entidade civil, constituída pelas diferentes denominações religiosas” (art.33, §2°).

Já a interpretação do §1º do art.210 da Constituição, argumentam, deveria ser delimitada no sentido de excluir a oferta do ensino religioso “transversal” em escolas públicas (ou seja, sua oferta em meio aos demais conteúdos escolares, que normalmente ocorre nas séries iniciais do ensino fundamental e quando o ensino não se organiza em disciplinas específicas) e vedar sua inclusão na carga horária mínima obrigatória, por violar o princípio da facultatividade. Além disso, a interpretação do caráter facultativo desse ensino deve ser feita, ainda segundo o posicionamento das organizações admitidas como amici, no sentido de exigir dos alunos, pais ou responsáveis manifestação expressa da opção de matrícula na “disciplina”, vetando-se a inclusão automática dos estudantes.

Em função da prevalência da liberdade religiosa e da facultatividade, as organizações afirmam que o ensino religioso não pode compor o conteúdo obrigatório do ensino fundamental público, não constitui direito público subjetivo e questionam o financiado público direto desse ensino por parte do Estado. Sua afirmação na Constituição, argumentam, pode ser entendida no sentido de se assegurar a prerrogativa de oferta de ensino religioso nas escolas públicas, sem ônus para o Estado, e sob a responsabilidade das igrejas e crenças.

Diferentes formas de confessionalidade

A petição de amicus curiae aponta que em muitos sistemas de ensino prevalece, nas séries iniciais do ensino fundamental, a oferta “transversal” do ensino religioso. Neste caso, o caráter facultativo das aulas fica ameaçado, conclui. Este é o caso, por exemplo, do estado de São Paulo.

Levantamento sobre a forma de oferta do ensino religioso, produzido em 2009 pela organização parceira Ação Educativa, aponta que em cinco estados há previsão legal de adoção de ensino religioso explicitamente confessional; em nove estados, classificados em sua maioria como interconfessionais, a confessionalidade do ensino se expressa no acordo entre um conjunto definido de denominações religiosas, normalmente restritas ao campo cristão.

Já nos demais, prevalece o ensino religioso pluriconfessional, em que prevalece a noção de denominador comum entre os valores das diferentes religiões e crenças, ou ainda o ensino de história, antropologia, filosofia das religiões.

Para as proponentes, há limites importantes em relação à proposta de ensino religioso pluriconfessional. "Tendo como propósito justificar a presença do ensino religioso nas escolas públicas, a perspectiva pluriconfessional acaba se apropriando de conteúdos e enfoques que já deveriam fazer parte do ensino e que seriam mais adequadamente tratados nas disciplinas história, geografia, sociologia e filosofia, por exemplo. Valores universais vinculados à cidadania constituem o próprio objeto da escola pública e não deveriam depender do ensino religioso para ser ensinados. Também há enormes problemas na implementação prática do ensino religioso pluriconfessional, que decorrem da opção religiosa dos professores", afirmam.

De acordo com as organizações, as formas já implantadas de ensino religioso no Brasil, com espaço para o proselitismo de religiões, têm levado a um quadro de diminuição da tolerância em relação às religiões minoritárias. “Inúmeros são os relatos de intolerância e violência contra praticantes de religiões afro-brasileiras e de violação ao princípio da igualdade entre homens e mulheres”, afirmam.

Outros envolvidos na ação

Também foram admitidas pelo Supremo como amicus curiae organizações que defendem a constitucionalidade do ensino religioso confessional, fundamentando sua posição no caráter facultativo da disciplina. São elas: a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e Conferência dos Religiosos do Brasil, Associação Nacional de Educação Católica do Brasil.

A Grande Loja Maçônica do Estado do Rio de Janeiro e o Fórum Nacional Permanente do Ensino Religioso (FONAPER) também foram admitidos como amicus curiae, mas se manifestaram favoráveis ao parecer da PGR.

A expectativa das organizações é que o relator da ADI, ministro Ayres Britto, dê seu parecer sobre o caso até o mês de abril.

quinta-feira, 21 de junho de 2012

Vaticano barra menção a controle de natalidade

Autor(es): Por Sergio Leo | Do Rio
Valor Econômico - 21/06/2012

Há pelo menos 222 milhões de mulheres no mundo - um grupo maior que a população brasileira - que gostariam de usar anticoncepcionais mas não tem acesso a métodos contraceptivos modernos; muitas delas condenadas a ter filhos indesejados que aumentarão o contingente de pessoas em extrema pobreza hoje equivalente a um em cada sete habitantes do planeta. Dados como esse sustentaram uma disputa exótica na Rio+20, em que participou o Vaticano e saiu derrotado o Brasil.

Os dados mais recentes, como esse acima, sobre o crescimento populacional e situação mundial da chamada "saúde sexual e reprodutiva" serão divulgados hoje no Riocentro pelo Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA) para mostrar como ações de educação sexual e acesso a anticoncepcionais e preservativos devem estar no meio do debate sobre "desenvolvimento sustentável". Aliados a países com forte influência da Igreja, como Costa Rica e Nicarágua, os representantes do Vaticano conseguiram tirar do documento final da Rio+20 qualquer referência a "saúde reprodutiva".

"É preciso olhar a dinâmica populacional e ver se é sustentável ou insustentável, o que tem a ver com a capacidade das mulheres, especialmente as jovens, de cuidar da própria vida", argumentou o diretor do UNFPA, Babatunde Ojotimehin, em entrevista ao Valor. Em países latinos como os do Mercosul e da Comunidade Andina, um dos problemas mais graves é a gravidez indesejada de menores de idade, que afeta a disponibilidade e qualidade da força de trabalho e do contingente de pessoas com nível adequado de educação escolar.

Ojotimehin defende que os governos facilitem o acesso dos jovens a métodos anticoncepcionais e de proteção contra doenças sexualmente transmissíveis, um tabu para a Igreja. Segundo a UNFPA, a população mundial pode chegar a 9 bilhões em 2015 e ultrapassar 10 bilhões até o fim do século ou superar os 10 bilhões já em meados do século e bater acima de 16 bilhões até 2099, dependendo de como o mundo lidar com o crescimento populacional. A diferença entre as estimativas é de apenas uma criança a mais para cada duas mulheres em idade reprodutiva.

Ao comentar a derrota dos que queriam ver uma menção à "saúde sexual e reprodutiva" na Rio+20, o diretor da UNFPA prefere notar que, no documento final da conferência, os chefes de Estado endossarão o parágrafo em que os governos se comprometem a cumprir a chamada "Agenda do Cairo", documento firmado em 1994 em que os governos se comprometeram, entre outras coisas, dar mais poder às mulheres para planejar número de filhos e tratar da saúde sexual e reprodutiva das adolescentes para reduzir a gravidez indesejada.

Os especialistas como Ojotimehin rejeitam o termo desgastado de "controle populacional" e preferem falar em "saúde sexual e reprodutiva" para enfatizar o caráter autônomo e voluntário da ação das mulheres em relação à própria maternidade.

Já a Igreja teme que se abra um caminho à legalização do aborto nos países, e, por isso, seus representantes atuaram intensamente na Rio+20, até obrigar o governo a usar linguagem cifrada para tratar do assunto.

quarta-feira, 20 de junho de 2012

ATÉ VATICANO CONSEGUE ESVAZIAR O DOCUMENTO FINAL DA RIO+20

NEGOCIADORES: ACORDO FECHADO ERA "O POSSÍVEL"
O Globo - 20/06/2012

Na busca por consenso, foi preciso ceder até a exigência do Vaticano para retirar do texto menção a direitos reprodutivos; ambientalistas veem vitória da burocracia e derrota da Terra

Apesar de fazerem críticas pontuais ao conteúdo do texto, os diplomatas envolvidos na aprovação do rascunho do acordo final da Rio+20 após uma longa maratona de negociações saudaram o texto obtido como o melhor resultado possível.

O secretário da ONU para a Rio+20, Sha Zukang, agradeceu "à liderança do governo brasileiro e a forma de consulta abrangente que o Brasil liderou".

Mesmo admitindo que o texto "obviamente não seja tudo o que todo mundo queria", o chefe das negociações pelo lado americano, Todd Stern, avaliou que o documento aprovado na Rio+20 é um importante passo adiante. Ele elogiou ainda as decisões de fortalecer o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) e de criar o Fórum do Desenvolvimento Sustentável, na sede da ONU.

Para Stern, o chanceler brasileiro, Antonio Patriota, deixou bastante claro que o texto não será mais aberto a novas modificações durante a reunião dos chefes de Estado.

- Os brasileiros não têm a intenção de abri-lo, e há uma boa razão para isso: todo mundo tem coisas das quais não gosta no documento. Esse é um fio que, se você começar a puxar, vai tudo rapidamente.

Assim como Stern, o comissário europeu de Meio Ambiente, Janez Potocnik, disse que a versão final do texto da Rio+20 não atingiu a ambição desejada, mas preferiu evitar críticas à liderança brasileira.

-- É o maior passo, o possível, nessas negociações. Os caminhos e objetivos foram bem definidos, ainda que não haja um cronograma de implementação - afirmou.

Para Potocnik, houve progressos, e a maior conquista foi compreender a necessidade de se concentrar nos pilares da vida, como energia, água, terra, ecossistemas e oceanos. A ministra dinamarquesa do Meio Ambiente, Ida Auken, por sua vez, ressaltou o desejo de ver uma definição melhor, mais detalhada, da economia verde. Mas também se disse satisfeita diante da conjuntura de crise atual:

- Este não é o melhor acordo do mundo, mas é um acordo para um mundo melhor.

A opinião dos diplomatas não teve eco entre os ambientalistas. Para o diretor da Campanhas do Greenpeace Brasil, Marcelo Furtando, o documento aprovado ontem representa a "vitória da burocracia e a derrota do planeta Terra":

- O texto final joga fora as metas que estavam presentes em documentos anteriores, que já eram poucas. Estamos saindo da Rio+20 numa situação ainda pior do que aquela em que entramos na Rio 92.

Carlos Rittel, coordenador do programa de mudanças climáticas e energia da WWF Brasil, se disse indignado, porque as discussões sobre formas de financiamento foram jogadas para 2014 e as metas dos objetivos do desenvolvimento sustentável, para 2015.

Vaticano consegue excluir direitos reprodutivos

A falta de avanços não se limitou a temas ambientais. A pressão do Vaticano conseguiu que fosse retirada do texto final uma menção aos direitos reprodutivos da mulher. Na versão adotada, os 193 países concordaram apenas em "promover as oportunidades iguais do acesso de mulheres e meninas à educação, serviços básicos, oportunidades econômicas e serviços de saúde, incluindo a saúde sexual e reprodutiva da mulher".

O embaixador do Vaticano nas Nações Unidas, Francis Chullikatt, evitou polemizar. Ele admitiu problemas, mas se limitou a pedir a união da comunidade internacional.

- Este é o documento que temos -- disse Chullikatt ao GLOBO. - Não é um texto perfeito, mas podemos nos unir em torno dele para torná-lo perfeito. (Cláudio Motta, Eliane Oliveira, Henrique Gomes Batista, Liana Melo, Fernanda Godoy e Renata Malkes)

As polêmicas do novo Código Penal

Autor(es): Ricardo Brito
O Estado de S. Paulo - 20/06/2012

Do terrorismo à descriminalização de alguns casos de aborto, confira as alterações propostas pela comissão de juristas do Senado

Após sete meses de trabalho, a comissão de juristas do Senado que discute a reforma do Código Penal chegou a um consenso jurídico sobre as propostas na segunda-feira, 18, dia da reunião final. E foram tantas as sugestões de mudança que o presidente do colegiado, Gilson Dipp, disse que nenhum tabu ficou de fora. Mas será a partir de agora, com a busca do consenso político, que a quebra de tabus se tornará o verdadeiro adversário do anteprojeto.

Integrantes da comissão entregarão na quarta-feira da semana que vem o texto de 300 páginas ao presidente do Senado, José Sarney (PMDB-AP). A proposta então poderá ser formalmente discutida pelos parlamentares. Segundo eles, entre as sugestões propostas, a maior batalha será senadores e depois deputados aprovarem mudanças na legislação dos temas considerados religiosos, como o aumento de hipóteses em que o aborto deixa de ser crime.

Pela proposta, uma gestante de até 12 semanas poderá interromper a gravidez desde que um médico ou um psicólogo ateste que a mulher não tem condições de arcar com a maternidade. Atualmente, a prática é crime, exceto nas hipóteses em que a gravidez acarreta risco para a vida da mãe ou é resultado de estupro.

Mas até quem não é da bancada religiosa tem suas restrições à inovação. "Sou totalmente contra interromper uma gravidez por essas razões. Se ela não tem condições sociais para ter um filho, ela tem é de se cuidar", afirmou o senador Mozarildo Cavalcanti (PTB-RR), que é médico obstetra.

A comissão também se envolveu em outras polêmicas. Propôs criar o crime de enriquecimento ilícito nos casos de servidores ou autoridades públicas que não conseguirem comprovar a origem de determinado bem ou valor. Também sugeriu que a cópia de um CD de música ou de um livro didático para uso pessoal, sem qualquer objetivo de lucro, deixe de ser considerado crime de violação de direito autoral.

O líder do PSDB no Senado, Alvaro Dias (PR), afirmou que a tradição da Casa é votar em bloco as propostas de reforma de códigos. Dessa forma, o texto não é fatiado por assuntos, mas acaba tendo tramitação mais demorada por falta de acordo sobre temas diversos. Como exemplo, a comissão de reforma do Código de Processo Civil aprovou em junho de 2010 seu texto final e a proposta está ainda em tramitação na Câmara dos Deputados.

Eleições. O tucano admite que neste ano a discussão da proposta de reforma do Código Penal será ainda mais complicada por causa das eleições municipais, quando o Congresso entra em recesso branco e temas sensíveis são deixados de lado para não contaminarem a disputa. "Há temas que são perigosos em ano eleitoral. Creio que neste ano vai ser difícil", afirmou.

Os 23 principais tópicos

1. Aborto

No caso do aborto, são sugeridas a diminuição das penas e o aumento nas hipóteses de descriminalização. A principal inovação é que a gestante de até 12 semanas poderá interromper a gravidez desde que um médico ou psicólogo ateste que a mulher não tem condições de arcar com a maternidade

2. Ortotanásia

Deixa de ser um homicídio comum, com pena máxima de 20 anos para até 4 anos de prisão. A prática não será considerada crime quando o agente deixa de fazer uso de meios artificiais para manter a vida do paciente, a doença é grave e for irreversível, atestada por dois médicos, com consentimento do paciente ou da família.

3. Enriquecimento ilícito

Servidores públicos e agentes políticos dos três Poderes que não conseguirem comprovar a origem de um determinado bem ou valor poderão ser presos por até cinco anos. O Estado poderá se apossar do bem de origem duvidosa. Atualmente, ter patrimônio a descoberto não é crime por si só.

4. Jogo do bicho

A prática deixaria de ser contravenção, delito de menor potencial ofensivo, para se tornar crime, com pena de até 2 anos de prisão. Ao contrário do que ocorre hoje, os apostadores não estariam sujeitos a penas.

5. Furto

Uma pessoa que devolva um bem furtado pode ter a pena contra si extinta. A vítima tem de concordar expressamente com a restituição do produto, antes ou no curso do processo. A anistia valeria também para os reincidentes na prática.

6. Progressão de regime

Dificulta a progressão de regime para quem tenha sido condenado ao praticar crimes de forma violenta, sob grave ameaça, ou que tenham acarretado grave lesão social.

7. Abuso de autoridade

O servidor público poderá ser punido com até 5 anos de prisão. Pela lei atual, de 1965, a pena máxima é de 6 meses de prisão. Foi mantida a previsão para a pena de demissão para quem tenha praticado a conduta.

8. Crimes hediondos

Embora tenha excluído a corrupção do rol de crimes hediondos, o colegiado acrescentou outros sete delitos ao atual rol: redução análoga à escravidão, tortura, terrorismo, financiamento ao tráfico de drogas, tráfico de pessoas, crimes contra a humanidade e racismo. Os crimes hediondos são considerados inafiançáveis e não suscetíveis de serem perdoados pela Justiça, tendo regimes de cumprimento de pena mais rigorosos que os demais crimes.

9. Crime de terrorismo

Foi sugerida a criação do tipo penal específico para crimes ligados ao terrorismo, com pena de 8 a 15 anos de prisão. A proposta prevê ainda revogação da Lei de Segurança Nacional, de 1983, usada atualmente para enquadrar práticas terroristas. A conduta não será considerada crime se tiver sido cometida por movimentos sociais e reivindicatórios.

10. Bebida a menores

De acordo com a nova proposta, passaria a ser considerado crime vender ou simplesmente oferecer bebidas alcoólicas a menores, ressalvadas as situações em que a pessoa seja do convívio dele.

11. Anistia a índios

Teriam redução de pena ou simplesmente seriam anistiados os índios que praticarem crimes de acordo com suas crenças, costumes e tradições. A previsão só valerá para situações em que haja um reconhecimento de que o ato não viole tratados reconhecidos internacionalmente pelo País e ficará a critério da decisão do juiz. O oferecimento de bebida a índios dentro das tribos passaria a ser crime, com pena de até 4 anos de prisão.

12. Organização criminosa

Cria o tipo penal, com penas de até 10 anos de prisão. Hoje, por inexistência de previsão legal, a conduta é enquadrada em formação de quadrilha, com pena máxima de 3 anos.

13. Máquina eleitoral

Poderá ser punido com pena de até 5 anos de prisão o candidato que tenha se beneficiado pelo uso da máquina pública durante o período eleitoral. Hoje, a pena é de 6 meses. O colegiado enxugou de 85 para apenas 14 os tipos de crimes existentes no Código Eleitoral. Entre as sugestões, estão o aumento de pena para crimes eleitorais graves, como a compra de votos e a coação de eleitores, e a descriminalização de algumas condutas, como a boca de urna.

14. Empresas criminosas

Uma empresa pode ser até fechada, caso tenha cometido um crime. Ela responderá a processo se tiver cometido crimes contra a economia popular, contra a ordem econômica e contra a administração pública, que é o caso de corrupção. Atualmente, há previsão na Constituição para esse tipo de sanção penal, mas na prática apenas as que atuam na área ambiental estão sujeitas a penalização.

15. Informação privilegiada

Cria o tipo penal para quem se vale de uma informação reservada de uma empresa que potencialmente pode aumentar as ações dela, tem a obrigação de não a revelar ao mercado, mas a utiliza para obter privilégios.

16. Cópia de CD

Deixaria de responder a processo por "violação do direito autoral" quem fizer uma cópia integral de uma obra para uso pessoal, desde que não tenha objetivo de lucro. Ou seja, copiar um CD de música ou um livro didático para uso próprio deixaria de ser crime. Atualmente, a pena para os condenados pela conduta pode chegar a até 4 anos.

17. Meio ambiente

Seria aumentada de 1 ano para 3 anos a pena máxima para quem tenha sido condenado por realizar obra ou serviço potencialmente poluidor sem licença ou autorização dos órgãos ambientais competentes.

18. Abuso de animais

Passaria a ser crime abandonar animais, com pena de até 4 anos de prisão e multa. Foi aumentada a pena para quem tenha cometido abuso ou maus tratos a animais domésticos, domesticados ou silvestres, nativos ou exóticos. A pena subiria de 3 meses a 1 ano de prisão para 1 ano a 4 anos.

19. Discriminação

Aumentariam as situações em que uma pessoa pode responder na Justiça por discriminar outra. Pelo texto, poderá ser processado quem praticar discriminação ou preconceito por motivo de gênero, identidade ou orientação sexual e em razão da procedência regional. Pela legislação atual, só podem responder a processo judicial quem discrimina o outro por causa da raça, da cor, da etnia, da religião ou da procedência nacional. Os crimes continuariam sendo imprescritíveis, inafiançáveis e não sujeitos a perdão judicial ou indulto. A pena seria a mesma de atualmente, de até 5 anos de prisão.

20. Embriaguez ao volante

Foi retirado qualquer obstáculo legal para comprovar que um motorista está dirigindo embriagado. Passaria a ser crime dirigir sob efeito de álcool, bastando como prova o testemunho de terceiros, filmagens, fotografias ou exame clínico.

21. Drogas sem crime

Pela proposta, deixaria de ser crime portar drogas para consumo próprio. Não haveria crime se um cidadão for flagrado pela polícia consumindo entorpecentes. Atualmente, a conduta é considerada crime, mas sujeita apenas à aplicação de penas alternativas. Mas há uma ressalva para a inovação: consumir drogas em locais onde haja a presença de crianças e adolescentes continua sendo crime. A venda - de qualquer quantidade que seja - é crime. O plantio - se for para consumo próprio - não seria mais considerado crime.

22. Delação premiada

O delator poderia ter redução de pena e até ficar livre da prisão caso colabore com a Justiça.

23. Crimes cibernéticos

Cria o tipo penal para tipificar crimes contra a inviolabilidade do sistema informático, ou seja, aqueles cometidos mediante uso de computadores ou redes de internet, deixando de serem considerados crimes comuns. Passaria a ser crime o mero acesso não autorizado a um sistema informatizado.

segunda-feira, 18 de junho de 2012

“É preciso resgatar a alma da escola”

Entrevista
Gazeta do Povo

João Malheiro, mestre e doutor em Educação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e autor do livro Fortalecendo a alma da escola

Publicado em 08/05/2012 | Denise Drechsel

Governantes e escolas estão muito preocupados com dados e estatísticas e se esqueceram do mais importante: a aprendizagem de excelência. O alerta é do mestre e doutor em Educação João Malheiro, que defende ser possível reverter esse quadro. Basta um comprometimento maior das instituições de ensino, dos pais e professores. Acompanhe os principais trechos da entrevista dada pelo educador à Gazeta do Povo:

O senhor concorda com a estrutura da escola de hoje?

A escola como está estruturada hoje não contribui para a educação e nem para a realização das pessoas. Os nossos índices de qualidade são vergonhosos, ainda mais se comparados com outros países. E há ainda outro aspecto. Um estudo feito com jovens profissionais de sucesso no Rio de Janeiro mostra que, apesar do dinheiro e dos meios materiais que possuem, há um alto índice de insatisfação nas suas vidas. Por que isso acontece? Porque governo, pais, instituições e professores estão mais preocupados com o aspecto material das escolas – dados e estatísticas – e se esqueceram da “alma” da escola. Se se considera que uma criança vai para a escola só para passar no Enem, no vestibular, para conseguir emprego, é muito pouco, muito pobre. Os alunos têm de ir à escola para aprender e se transformarem em pessoas melhores.

Isso não seria um problema dos pais? Qual seria a solução?

A educação só funciona quando família, professores e alunos estão falando a mesma linguagem. Hoje vivemos um forte problema ético, não estão todos na mesma direção. A mãe fala uma coisa, o pai outra, a professora outra e a televisão outra. A criança fica em um estado de choque violento e sofre com essa desorientação. Além disso, muitos pais não sabem ser pais. Estão perdidos. A maioria delega às instituições de ensino a educação dos filhos. A escola, há 20 anos, assumiu essa responsabilidade. Hoje, depois de sentir o peso da tentativa de educar sem a ajuda dos pais, desistiu. Então, quem está educando? A mídia. A solução, repito, passa por um comprometimento maior das instituições de ensino, dos pais e professores.

O governo tem ajudado a melhorar essa situação?

O governo não está muito interessado na educação de excelência. Ele quer números, estatísticas, passar para o próximo governo dando bons dados e índices. Isso é manipular a imagem da educação. No fundo, não há educação. Os ministros não estão preocupados com os alunos. A Teoria de Resposta ao Item [TRI] usada na avaliação do Enem, por exemplo, é interessante do ponto de vista de estatística, mas o seu uso em uma prova nacional é de alto risco. As notas ficam disfarçadas e, no fundo, todos são avaliados em uma grande mediocridade. A solução para mim – que é contrária à ideologia do governo atual – seria a de aumentar a autonomia das escolas, com métodos mais eficientes de fiscalização do ensino, como é feito em outros países, como os Estados Unidos. Isso permitiria também uma maior interação de pais e professores e a consequente melhoria da educação.

Nesse cenário, as novas tecnologias ajudam?

Os estudos indicam que os bons alunos, com ou sem computador, sempre são bons. No caso dos maus alunos, esses novos meios tecnológicos de fato ajudam para a aquisição de conhecimento. Mas isso não significa que estejam aprendendo. Só se pode dizer que o aluno aprendeu quando ele não só retém informações como é capaz de refletir sobre elas, torná-las próprias, olhá-las com espírito crítico. E, nesta fase, não há nenhuma tecnologia do mundo que consiga os resultados alcançados com horas de estudo, lição de casa, trabalho sério feito com os amigos, processo de repetição de exercícios e a boa decoreba, que tem de existir sempre. A má decoreba é quando o garoto decora uma série de coisas sem significado para passar em uma prova. A boa decoreba é quando os conhecimentos ajudam a criar uma estrutura mental sólida e criativa. Todo bom aluno tem na memória uma série de informações que usa para o resto da vida. Muitos jovens estão vazios de conteúdo, não têm vocabulário porque não estão habituados a estudar. Diante disso, a conclusão é que as novas tecnologias são muito boas, mas, se o aluno não estudar e refletir os conteúdos apresentados com recursos maravilhosos, não se lembrará de mais nada em poucos meses. Para que serve essa educação? Estamos enganando eles ou não?

Como devem se portar os professores?

Sem descartar nenhum desses meios, os professores devem estimular a reflexão dos alunos, relacionar matérias, preparar aula. Do contrário, todos esses instrumentos os transformam em papagaios; repetem aulas preparadas nos meios tecnológicos. E, obviamente, continuaremos a identificar as deficiências educacionais de sempre.

sábado, 16 de junho de 2012

“É preciso enfrentar o fracasso”

Michael Barber

Autor(es): Camila Guimarães
Época - 11/06/2012

O executor da reforma educacional da Inglaterra fechou as piores escolas da rede. Ele afirma que o Brasil precisa definir metas de qualidade no ensino

Entre 1997 e 2007, a Inglaterra passou por uma rápida e profunda reforma educacional. Michael Barber, que foi conselheiro de diversos países na área de educação e hoje é executivo da britânica Pearson, uma das maiores empresas educacionais do mundo, teve papel fundamental na mudança. Como assessor-chefe do Ministério da Educação do governo Tony Blair e depois como seu assessor direto, Barber foi responsável por colocar em prática uma das medidas mais polêmicas – e necessárias – da reforma: fechar as escolas de desempenho ruim. Nesta entrevista a ÉPOCA, ele diz que o único caminho para o Brasil ganhar relevância mundial é melhorar a qualidade de sua educação. Para isso, afirma ele, é preciso investir na carreira dos professores.

ÉPOCA – Quais as principais características da reforma educacional implantada na Inglaterra?

Michael Barber – A primeira coisa que fizemos foi definir como prioridade melhorar a qualidade do ensino de leitura, escrita e matemática nas escolas primárias, que atendem crianças de 5 até 11 anos. Para isso acontecer, o governo elaborou materiais estruturados de aulas nessas três áreas e treinou todos os professores para que pudessem usá-los em sala. Todos os 190 mil professores aprenderam as melhores práticas de ensino em leitura, escrita e matemática. A forma como lidamos com o fracasso foi um segundo pilar da reforma. Para mudar, é preciso enfrentar o fracasso. Onde havia escolas com baixo desempenho, Londres (o governo britânico) interveio. Onde havia redes locais de ensino ruins, Londres interveio. Muitas redes de ensino não tinham coragem suficiente para enfrentar os pontos negativos do sistema e perpetuavam os pontos falhos. Esse tipo de enfrentamento, sempre centralizado em Londres, foi muito controverso, muito difícil, mas crucial para a reforma dar certo. Com ele, passamos uma mensagem para autoridades locais, sociedade e professores: havia um padrão mínimo de qualidade de ensino aceitável. Por fim, demos autonomia e cobramos um desempenho transparente e prestação de contas das boas escolas. O diretor pode escolher quem ele vai contratar, quanto vai pagar de salário, quanto vai gastar em livros, em computadores e como ele organiza a rotina diária da escola. Em compensação, essas escolas são avaliadas regularmente, e os diretores se responsabilizam por elas.

ÉPOCA – Como acontecia a intervenção nas escolas ruins?

Barber – As escolas do governo são inspecionadas a cada quatro anos por uma agência independente. Essa agência determina se o desempenho de uma escola é insatisfatório. Nesses casos, com as autoridades locais, nós fechamos algumas escolas. Outras foram fechadas, melhoradas e depois reabertas. Houve ainda casos em que tivemos de transferir alunos para escolas melhores. O tempo todo a questão era sempre como educar essa criança melhor e o mais rápido possível. Essa é a única questão que importa. Todo o resto é subjetivo.

ÉPOCA – Durante o período da reforma, houve resistência por parte dos sindicatos dos professores?

Barber – Obviamente havia diferentes visões entre os professores. Nem todos apreciaram a política assertiva de Londres. Mas o número de professores a favor da reforma cresceu ao longo dos anos. Isso porque os treinamentos eram de alta qualidade, e eles viam por si mesmos os resultados positivos em suas salas de aula.

ÉPOCA – O senhor acredita que o Reino Unido tenha lições a ensinar ao Brasil?

Barber – Pelo tamanho do sistema educacional brasileiro, Brasília não conseguiria executar uma reforma da maneira como Londres fez (a reforma britânica não atingiu a Escócia, que tem um sistema educacional próprio). Fica mais fácil se a parte operacional ficar a cargo dos governos locais. Ao governo central cabe estimular a sociedade, os pais, os professores e estabelecer expectativas e metas de qualidade. Em países com estrutura federal similar à do Brasil, acontece isso. A Austrália acaba de criar um currículo nacional unificado. Na Alemanha, o governo federal não controla os Estados, mas estabeleceu alguns padrões. Nos Estados Unidos, o governo teve um papel fundamental na reforma dos últimos anos com o programa Race to the Top. No Canadá, o governo central é fraco, mas os ministros se reúnem regularmente num comitê para trocar experiências.

ÉPOCA – Como o senhor vê a educação brasileira?

Barber – Durante o período da ditadura militar, não houve muito interesse em investir na qualidade da educação pública. Isso gerou uma demanda por escolas particulares, e o setor privado cresceu consideravelmente. O Brasil fez progressos importantes nos últimos dez anos. No Pisa (avaliação internacional de estudantes feita pela OCDE), o Brasil ainda tem um desempenho muito baixo, mas sua evolução é significativa. Há bons exemplos de sistemas estaduais com bons resultados, como o de Minas Gerais. Vejo muitos projetos educacionais isolados dos quais as escolas podem se orgulhar.

ÉPOCA – Projetos isolados são o suficiente para a ambição brasileira de mudar de patamar econômico e social?

Barber – De jeito nenhum. O Brasil teve um grande crescimento econômico recente e tem grandes aspirações, tanto internamente como no que diz respeito ao papel que ocupará globalmente. Mas o Brasil só terá influência mundial se melhorar a qualidade da educação como um todo.

ÉPOCA – O senhor arrisca um palpite de como fazer isso?

Barber – É um desafio imenso. Há duas coisas fundamentais que precisam ser feitas: aumentar muito a média do desempenho dos estudantes brasileiros – e isso exigirá anos e anos de trabalho. Em segundo lugar, e mais difícil ainda, é preciso reduzir urgentemente a desigualdade do ensino. Um dos caminhos para isso é investir na carreira de professor. Foi o que fizemos no segundo mandato de Tony Blair. Foi feito investimento de capital, e foram criadas políticas públicas para a formação e seleção de professores melhores. Garantir profissionais com alta qualificação e com características pessoais adequadas ao ensino é crucial para que o Brasil continue melhorando o desempenho de seus alunos. A carreira do professor tem de ser valorizada para atrair as melhores cabeças para a profissão. As pessoas precisam escolher seguir a carreira de professor – e não virar um deles só porque não tinham nada melhor para fazer.

ÉPOCA – Essa mudança de patamar na qualidade dos professores leva tempo...

Barber – Na reforma educacional da Inglaterra, fizemos isso com alguma rapidez. Uma das principais medidas foi melhorar o estágio feito pelos futuros professores. Para um professor se formar na Inglaterra, é preciso estudar três anos e depois fazer mais um ano de estágio. Nesse estágio, o futuro professor passa pelo menos dois terços do tempo dentro da escola. Não em salas de aula de universidades, não assistindo a palestras, mas de fato trabalhando com outros professores, dentro das salas de aula iguais às que assumirão mais tarde. As universidades tiveram de construir parcerias com as escolas para que isso acontecesse, e o governo apoiou essas parcerias com dinheiro. Formar bons professores nunca é rápido o suficiente. Um dos conselhos que eu daria ao governo brasileiro é persistir. Fazer uma reforma na educação não é tarefa de um ou dois anos, mas de cinco a dez anos. Com a liderança certa, as diretrizes certas e persistência, a mudança para melhor acontecerá.

quinta-feira, 14 de junho de 2012

Uma escola para o jovem

Autor(es): Mozart Neves Ramos
Correio Braziliense - 14/06/2012

Membro do Conselho de Governança do Todos Pela Educação e do Conselho Nacional de Educação e professor da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE)

Não se pode deixar de reconhecer os inúmeros esforços que os governos, nas suas três esferas, vêm promovendo nas redes de ensino no Brasil. Isso pode ser percebido no que se refere, por exemplo, ao acesso, ao financiamento e ao banco de informações e dados disponíveis, seja por meio do Censo Escolar ou provenientes dos sistemas de avaliação implantados. Hoje sabemos a situação de cada escola brasileira. Um sistema complexo, diversificado e de tamanho continental. Apesar desses esforços, os números mostram que a aprendizagem é ainda um enorme desafio educacional para o país, principalmente para o ensino médio.

A fotografia desta etapa é ainda muito preocupante, tanto em fluxo escolar como na aprendizagem. Hoje, apenas 50% dos jovens de 19 anos terminam o ensino médio, sendo que 89% dos que concluem essa etapa da educação básica não aprenderam o esperado em matemática. Alguns passos vêm sendo dados na tentativa de reverter esse cenário: o financiamento do ensino médio por meio do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) e a aquisição do livro didático de todas as matérias para todos os alunos. Para se ter uma ideia de como essa política é recente, até 2005 os alunos dessa etapa não recebiam livros didáticos do governo federal por meio do Ministério da Educação (MEC).

O avanço, no entanto, só ocorrerá na velocidade necessária quando o desafio da valorização e da formação do professor for devidamente enfrentado, atrelado a um currículo escolar que seja capaz de motivar os nossos jovens. A escola de ensino médio no Brasil não tem dialogado com o mundo juvenil.

Mas uma iniciativa que emergiu em 2005, em Pernambuco, pode servir de inspiração para a imprescindível mudança dessa etapa: o programa Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral, iniciativa do governo Jarbas Vasconcelos em parceria com o Instituto de Co-Responsabilidade pela Educação (ICE). O êxito dessa iniciativa motivou o atual governador Eduardo Campos não só a mantê-la, mas a expandi-la com qualidade. Um belo exemplo de continuidade de políticas públicas em prol da educação.

O sucesso dessa parceria público-privada para a educação pública fez com que outros estados da Federação também adotassem essa iniciativa, como foi o caso do Ceará, do Piauí e, mais recentemente, de São Paulo. O modelo pedagógico e de gestão dessas escolas de ensino médio em tempo integral serviu também de inspiração para que o município do Rio de Janeiro criasse o Ginásio Carioca, destinado aos alunos das séries finais do ensino fundamental.

Tudo começou com uma complexa reforma predial do "velho" Ginásio Pernambucano, "um caso que virou uma causa", como diz o idealizador do modelo, o empresário Marcos Magalhães.

O jovem quer uma escola que caiba na vida, e esse modelo de escola consagra esse anseio juvenil, uma vez que promove saltos de aprendizagem em decorrência de um projeto pedagógico e de gestão inovadora. Uma escola que promove o associativismo juvenil e empreendedorismo na formação dos alunos, que recebem todo o material necessário à aprendizagem. Os professores são de tempo integral (não ficam pulando de uma escola para outra), avaliados pelo mérito de seu trabalho em sala de aula e o teto salarial decorre do resultado dessas avaliações. Os diretores são igualmente avaliados mediante indicadores de gestão.

Como resultado, os alunos gostam da escola e, assim, aprendem de fato. E os resultados já surgiram com o primeiro Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) dos alunos dessas escolas, em 2008. A nota média dos alunos na prova objetiva foi 44,27, enquanto a média Brasil foi de 40,54; dos alunos de ensino médio das demais escolas públicas de Pernambuco, essa nota foi de apenas 38,71. Em 2010 esse quadro se manteve. No Sistema de Avaliação da Educação de Pernambuco (Saepe), essas escolas ocupam sempre as primeiras posições.

Para a ampliação da iniciativa, o grande desafio não está no custo dessa nova escola, mas em ter professor qualificado para atuar no novo modelo pedagógico. Ou seja, estamos falando de uma formação inicial e continuada que dialogue com a escola pública.

A escola pública que sonho não é aquela para os menos favorecidos economicamente, mas aquela em que cada um de nós colocaria seus próprios filhos. E o programa Escolas de Ensino Médio em Tempo Integral, no modelo que foi desenhado em Pernambuco, é um desses exemplos que o país todo deveria seguir.

terça-feira, 12 de junho de 2012

O único caminho é a civilização

Veja - 11/06/2012

Se há alguma chance de escapar do impasse em que nos metemos, ela está em manter e acelerar os avanços tecnológicos. A salvação de Veneza por meio de comportas é uma boa metáfora para entender onde estão as soluções para os problemas ambientais.

Em algum momento de 2014, a Itália vai terminar a construção de 78 comportas móveis criadas para proteger as três baias de Veneza do aumento das marés do Mar Adriático. As portas maciças - de 20 por 30 metros, com 5 metros de espessura - permanecerão deitadas no fundo arenoso na junção entre a laguna e o mar. Quando houver previsão de maré alta, as comportas serão esvaziadas e preenchidas de ar comprimido, erguendo-se nos gonzos para manter o Mar Adriático fora da cidade. Três eclusas permitirão a entrada e a saída de navios da laguna quando as comportas estiverem levantadas.

Em nenhum outro lugar do mundo o ser humano teve de criar e recriar tão constantemente sua infraestrutura em resposta às mudanças ambientais quanto em Veneza. A ideia das comportas surgiu em 1966, depois da enchente que inundou a cidade por completo. Foram necessárias três décadas, de 1970 a 2002, para que o hidrólogo Roberto Frassetto e seus colegas convencessem as autoridades italianas a construí-las. Não são todos os especialistas que enxergam nas comportas oscilantes e flutuantes a salvação de Veneza. Depois de o projeto ser aprovado, o presidente do escritório italiano da WWF, o Fundo Mundial para a Natureza, declarou: "O destino da cidade agora depende de uma aposta tecnológica pretensiosa, cara e prejudicial ao ambiente".

O esplendor de Veneza sempre dependeu, literalmente, de uma série de apostas tecnológicas pretensiosas, caras e prejudiciais ao ambiente. Suas construções são sustentadas por pilares feitos de lariços e carvalhos antigos arrancados de florestas do interior há 1 000 anos. Com o tempo, os pilares foram petrificados pela água salgada e construíram-se catedrais sobre eles. Pouco a pouco, a tecnologia ajudou a transformar a cidade de humildes pescadores no que conhecemos hoje.

Salvar Veneza significou criar Veneza não uma, mas muitas vezes desde a sua fundação. É por isso que resgatá-la do aumento do nível do mar serve como uma metáfora adequada para a solução dos enormes problemas ambientais deste século. Cada novo ato de salvação resultará em consequênciás não pretendidas, positivas e negativas, que, por sua vez, exigirão novas tentativas de salvar a cidade. O que chamamos de "salvar a Terra" exigirá, na verdade, criá-la e recriá-la inúmeras vezes enquanto a humanidade a habitar.

Atualmente, muitos ambientalistas enxergam a tecnologia como uma afronta à sacralidade da natureza, mas as tecnologias usadas até hoje pelo homem sempre foram perfeitamente naturais. Peles de animais, fogo, fazendas, moinhos de vento, usinas nucleares e painéis solares - todos esses avanços surgiram e foram criados a partir de materiais puros cxtraídos da Terra.

Além disso, no curso da história humana, as tecnologias não foram apenas inventadas pelo homem. Elas também ajudaram o homem a se inventar. Evidências arqueológicas recentes sugerem que a forma das mãos do homem moderno, com seus polegares e dedos mais curtos, permitiu um melhor manuseio das ferramentas. Mãos de macacos são ótimas para subir em árvores, mas não para lascar pedras ou confeccionar pontas de flechas. Os ancestrais do homem cujas mãos tinham esse formato mais adequado obtiveram uma vantagem evolutiva em relação aos outros.

A transformação das mãos e dos pulsos permitiu aos nossos antepassados andar cada vez mais eretos, caçar, comer carne e, assim, evoluir. Com a mudança na postura, o homem conseguiu correr atrás de animais atingidos por suas armas. A corrida de longa distância foi facilitada por glândulas sudoríparas que substituíram os pelos. O uso do fogo para cozinhar a carne adicionou uma quantidade muito maior de proteína à dieta, o que resultou em crescimento significativo do cérebro - tanto que algumas de nossas ancestrais começaram a dar à luz prematuramente. Esses bebês prematuros sobreviveram graças à criação de ferramentas feitas com vesículas e peles de animais que amarravam os recém-nascidos ao peito da mãe. A tecnologia, resumindo, nos tornou humanos.

É claro que, conforme nosso corpo, nosso cérebro e nossas ferramentas evoluíram, também evoluiu nossa habilidade de modificar radicalmente o ambiente. Caçamos mamutes e outras espécies até a extinção. Queimamos florestas e savanas inteiras para encontrar mais facilmente a caça e limpar a terra para a agricultura. E, muito antes de as emissões de CO2 pela ação humana começarem a afetar o clima, já tínhamos alterado o albedo da Terra, substituindo muitas das florestas do planeta por áreas de agricultura cultivada. Mesmo que a capacidade do homem de alterar o ambiente, ao longo do último século, tenha aumentado substancialmente, essa tendência é antiga. A Terra de 100, 200 ou 300 anos atrás já havia sido profundamente moldada pelos esforços humanos.

Nada disso altera a realidade e os riscos das crises ecológicas resultantes da ação do homem. O aquecimento global, o desmatamento, a pesca excessiva e outras atividades, se não ameaçam a nossa própria existência, certamente representam a possibilidade de sofrimento para milhares de milhões, se não bilhões, de seres humanos. Tudo isso está transformando a natureza em um ritmo nunca visto em centenas de milhões de anos. A diferença entre a nova crise ecológica e as depredações anteriores ao meio ambiente promovidas pelo homem e por seus ancestrais é em tamanho e escala, não na forma.

Há muito tempo os homens se tornam co-criadores do ambiente que habitam. Qualquer proposta para resolver os problemas ambientais que menospreze a tecnologia e tente negar a coevolução entre homens e natureza, postura ainda em vigor, corre o risco de piorá-los. No entanto, as elites do Ocidente - que se apoiam fortemente na tecnologia - afirmam justamente que o desenvolvimento e a tecnologia são as causas dos problemas ecológicos, não a solução. Essas elites argumentam que o sacrifício econômico é a saída para a crise ambiental, mas vivem atualmente um período de riqueza e abundância jamais visto. Elas consomem recursos em escala imensa, esmagando qualquer medida de conservação que possam tornar enquanto vivem em enclaves urbanos densos (e muitas vezes da moda), dirigindo automóveis econômicos e comprando produtos locais. De fato, as expressões mais visíveis e comuns da crença na salvação ecológica são as novas formas de consumo. A compra de produtos e de serviços verdes - corpo o Toyota Prius, a lavadora e secadora eficiente, o prédio de escritórios com certificação LEED - é identificada pelos consumidores como uma atitude que demonstra o seu status moral superior.

O mesmo se dá na esfera política. Líderes mundiais - para a alegría de um eleitorado de tendência esquerdista que controla o equilíbrio do poder político em muitas economias desenvolvidas - fazem promessas atrás de promessas sobre a mudança climática, a extinção de espécies, o desmatamento e a pobreza no mundo. Tudo enquanto cuidadosamente evitam qualquer ação que possa impor custos ou sacrifícios reais a seus eleitores. Mesmo que tenha sido conveniente para muitos observadores simpatizantes relacionar o fracasso de tais esforços à ganância corporativa, à corrupção e à covardia política, a verdade é que todo o projeto que poderíamos definir como pós-materialista é, de maneira confusa, construído sobre uma base de abundância e consumo material que seria consideravelmente ameaçada por qualquer tentativa séria de resolver as crises ecológicas por meio de uma redução substancial da atividade econômica.

Não é tão difícil entender como essa hipocrisia acabou por contaminar uma parcela da nossa cultura com intenções aparentemente tão boas. As grandes populações do norte desenvolvido alcançaram uma segurança econômica, uma riqueza e uma liberdade sem precedentes. O objetivo perseguido pela humanidade por milhares de anos - a emancipação da natureza, do tribalismo, da escravidão e da pobreza - foi substituído hoje pela necessidade de lidar com as conseqüências da modernização, como a poluição, a proliferação nuclear e o aquecimento global.

Cada vez mais incrédulas em relação à meritocracia do capitalismo e ao critério econômico como padrões implícitos do sucesso individual e como o indicador que define o progresso da sociedade, as gerações posteriores à II Guerra Mundial redefiniram as noções de bem-estar e qualidade de vida nas sociedades desenvolvidas. O humanitarismo e o ambientalismo tornaram-se os movimentos sociais dominantes, levando a proteção ambiental, a preservação da qualidade de vida e outras questões da "política de vida". termo cunhado pelo sociólogo britânico Anthony Giddens, para o primeiro plano.

A ascensão da economia do conhecimento - que engloba a medicina, o direito, as finanças, a imprensa, o mercado imobiliário, o marketing e o terceiro setor - acelerou ainda mais o desencanto crescente do Ocidente com a vida moderna, especialmente entre a elite educada. Os trabalhadores do conhecimento estão mais alienados em relação ao produto de seu trabalho do que qualquer outra classe na história, incapazes de reivindicar algum papel na produção de comida, abrigo ou até de artigos básicos de consumo. Mesmo assim eles podem passar tempo em lugares lindos - em seus jardins, no interior, na praia e nas proximidades de florestas. Enquanto aproveitam essas paisagens, eles dizem a si mesmos que as melhores coisas na vida são de graça, apesar de terem gasto e consumido muito para viajar para lugares onde se sentem calmos, em paz e longe das preocupações do mundo moderno.

Esses valores pós-materialistas abriram espaço para a ascensão de uma ecoteologia secular em grande parte incipiente, com medos apocalípticos de um colapso ecológico, noções desencantadas de uma vida em um mundo arruinado e a convicção crescente de que algum tipo de sacrifício coletivo é necessário para evitar o fim do mundo. Ao lado dessa pregação sombria brilham visões nostálgicas de um futuro transcendente, em que os humanos poderiam, mais uma vez, viver em harmonia com a natureza por meio do retorno da agricultura em pequena escala ou até do estilo de vida dos caçadores-coletores.

As contradições entre o mundo como ele é - cheio de consequências não intencionais das nossas ações - e o mundo como muitos de nós gostaríamos que ele fosse resultam em uma quase rejeição da modernidade. Gestos ocos são os sacramentos que definem essa ecologia. A crença de que devemos reduzir radicalmente nosso consumo para sobreviver enquanto civilização não é impedimento para as elites que pagam por universidades particulares, viagens frequentes de avião e iPads.

Assim, a ecoteologia, como todas as narrativas religiosas dominantes, atende às formas preponderantes de organização econômica e social nas quais está inserida. O catolicismo valorizava a pobreza, a hierarquia social e o agrarianismo para as massas nas sociedades feudais que viviam e trabalhavam na terra. O protestantismo defendia a industrialização, a acumulação de capital e a individualizaçào em meio ao crescimento das classes mercantis do começo das sociedades capitalistas - o que definiu as normas sociais na modernização das sociedades industriais.

A ecoteologia secular de hoje dá valor à criatividade, à imaginação e ao tempo livre no lugar da ética, da produtividade e da eficiência do trabalho em sociedades que cada vez mais prosperam a partir de suas economias do conhecimento e terceirizam a produção de bens industriais, entregando-a às sociedades em desenvolvimento. Vivendo em meio a níveis sem precedentes de riqueza e segurança, as elites ecológicas rejeitam o crescimento econômico como uma medida do bem-estar, contam fábulas sobre a modernidade e a tecnologia e alertam sobre a superpopulação no exterior, agora que as sociedades em que vivem são ricas e sua população parou de crescer.

Embora a ecoteologia seja mais forte em nações desenvolvidas da Europa e em cidades costeiras como Nova York e Los Angeles, nos Estados Unidos, essa tendência também pode ser facilmente identificada nos bairros ricos e bem educados do Rio de Janeiro, de Nova Délhi e da Cidade do Cabo.

Uma das características mais perenes da civilização é a maneira como as elites dominantes defendem crenças que entram em conflito com seu próprio comportamento. Os gregos antigos recitavam fábulas de Prometeu e Ícaro ao mesmo tempo que usavam o fogo, sonhavam em voar e buscavam alcançar fronteiras tecnológicas. Os primeiros agricultores contavam a história da expulsão do Éden como uma fábula contra a própria agricultura que praticavam. Europeus cristãos defendiam a pobreza e a paz enquanto acumulavam riquezas e travavam guerras.

Pregando a antimodernidade enquanto vivem como pessoas modernas, as elites ecológicas, seja em São Paulo, seja em São Francisco, confirmam seu status no topo da hierarquia pós-industrial do conhecimento. As elites abastadas dos países desenvolvidos oferecem tanto a seus compatriotas menos favorecidos quanto aos pobres do resto do mundo uma extensa lista de "não façam" - não se desenvolvam como nós nos desenvolvemos, não dirijam utilitários bregas, não consumam demais. Isso gera o ressentimento, e não a emulação de seus companheiros cidadãos no próprio país e no exterior. Que essas elites ecológicas se mantenham em um padrão diferente e ao mesmo tempo insistam que todos são iguais é mais uma demonstração de seu status superior, pois, dessa forma, elas não têm de responder nem mesmo à realidade.

Apesar de propor uma solução, a atual ecoteologia que nega o mundo é, na verdade, um obstáculo importante no tratamento dos problemas ecológicos criados pela modernização - obstáculo que deve ser substituído por uma nova visão de mundo criativa e que celebre a vida. Afinal, o desenvolvimento humano, a riqueza e a tecnologia nos libertaram da fome, da privação e da insegurança. Agora, eles devem ser considerados essenciais para superar os riscos ecológicos.

A ideia de que nações pobres podem ser levadas a escolher um caminho em direção ao desenvolvimento fundamentalmente diferente do que foi usado no Ocidente é ingênua. O Brasil está desenvolvendo o interior de suas florestas, como a Europa e os Estados Unidos fizeram, com represas, fazendas, ranchos e estradas para vender sua carne, soja e minerais no mercado externo. Seus povos indígenas assinam contratos com madeireiras; seus seringueiros criam gado. A China é hoje uma produtora para o mundo graças à determinação confucionista, à industrialização e ao carvão barato - não a rodas-d"água, painéis solares e respeito à natureza. Nesse processo, a China tirou quase meio bilhão de camponeses da pobreza extrema. A Índia escolheu a modernização e a integração na economia global do conhecimento, em vez do caminho ascético e contemplativo defendido por Mahatma Gandhi.

Não há dúvida de que a humanidade está refazendo radicalmente a Terra, mas o temor de um apocalipse ecológico, de condenar esse mundo a uma destruição furiosa, não é sustentado pelas ciências. O aquecimento global pode desencadear desastres piores e a ruptura dos padrões de chuvas, degelo e agricultura, mas poucas evidências sugerem que ele acarretará o fim da modernização. Mesmo os cenários mais catastróficos do painel climático da Organização das Nações Unidas (ONU), o IPCC, preveem um aumento do crescimento econômico. Enquanto muitos ambientalistas ricos alegam estar especialmente preocupados com o impacto do aquecimento global sobre os pobres, é o desenvolvimento rápido, e não o retardado, que tem mais chance de proteger os pobres dos desastres naturais e de perdas na agricultura.

O que a modernização pode ameaçar de forma incisiva não é a civilização, mas a sobrevivência daquelas espécies e ambientes selvagens com os quais nos importamos. Embora o aquecimento global domine o discurso ecológico, as maiores ameaças ao que não é humano continuam a ser as alterações diretas na terra e nos mares. As maiores, mais antigas e mais diversificadas florestas do mundo estão sendo transformadas em plantações de árvores, áreas de cultivo e fazendas de gado. Os homens estão promovendo uma extinção de espécies maciça e sem precedentes com a destruição de habitats. Estamos prestes a perder os primatas. A pesca nos mares foi tão desmedida que a maior parte dos peixes grandes acabou.

A visão apocalíptica da ecoteologia adverte que a degradação da natureza vai prejudicar a base da civilização, mas a história mostrou o oposto: a degradação do meio ambiente nos enriqueceu. Tornamo-nos bastante adeptos da transferência da riqueza e da diversidade da natureza para os ambientes humanos. A solução dessas consequências não intencionais da modernidade é, e sempre foi, mais modernidade - assim como a solução das consequências não intencionais das nossas tecnologias sempre foi mais tecnologia. O bug do computador do ano 2000 foi resolvido com uma melhor programação do sistema, não com a volta das máquinas de escrever. A crise do buraco na camada de ozônio foi evitada não com o fim do ar-condicionado, mas por meio de tecnologias mais avançadas e menos prejudiciais.

A questão para a humanidade, portanto, não é se os homens e a civilizacão vão sobreviver, mas sim qual o tipo de planeta que habitaremos. Gostaríamos de um planeta com primatas selvagens, florestas antigas, um oceano vivo e um aumento modesto da temperatura, em vez de um extremo? Claro que gostaríamos. Todo mundo gostaria. Somente a modernização contínua e a inovação tecnológica podem tornar isso possível.

Depositar fé na modernização exigirá uma visão de mundo na qual a tecnologia seja humana e sagrada, em vez de desumana e profana. Isso vai demandar a substituição da noção antiquada de que o desenvolvimento é antiético para a preservação da natureza pela concepção de que a modernização é a chave para salvá-la. Chamemos essa ideia de "teologia da modernização".

Enquanto a ecoteologia imagina que nossos problemas ecológicos são consequência da violação humana da natureza, a teologia da modernização enxerga os problemas ambientais como uma parte inevitável da vida na Terra. Enquanto a última geração de ecologistas via uma harmonia natural na Criação, os novos ecologistas veem mudanças constantes. Enquanto os ecoteólogos sugerem que as consequências não intencionais do desenvolvimento humano podem ser evitadas, os patrocinadores da modernização enxergam essas consequências como inevitáveis, tanto de forma positiva como negativa. Enquanto as elites ecológicas veem os poderes da humanidade como inimigos da Criação, os modernistas os veem como ponto fulcral para sua salvação. A teologia da modernização deveria, portanto, louvar, e não profanar, as tecnologias que levaram nossos ancestrais a evoluir.

Os riscos que a humanidade enfrenta agora são, cada vez mais, fruto de nossa própria criação - e temos sobre eles um controle apenas parcial, improvisado e provisório. Vários tipos de libertação - do trabalho árduo na agricultura e altas taxas de mortalidade infantil à tuberculose e valores tradicionais opressivos - implicam novos problemas, desde o aquecimento global e a obesidade até a alienação e a depressão. Esses novos problemas serão, em grande escala, menos graves que os antigos. A obesidade é melhor do que a fome. Viver em um mundo mais quente é melhor do que habitar um mundo sem eletricidade. Mas os novos desafios não deixam de ser problemas sérios.

A boa notícia é que já existem muitas tecnologias nascentes e promissoras para superar os problemas ecológicos. Estabilizar a emissão de gases de efeito estufa exigirá uma nova geração de usinas nucleares para substituir de maneira barata as usinas de carvão e também, talvez, retirar o dióxido de carbono da atmosfera e alimentar usinas de dessalinização para regar e fazer crescer florestas nos atuais desertos. Recuar as fronteiras agrícolas para longe das florestas exigirá um aumento maciço da produtividade agrícola através da engenharia genética. Substituir fazendas de gado que degradam o meio ambiente exigirá, quem sabe, produzir carne em laboratório - o que, gradualmente, será visto como menos repugnante do que os métodos cruéis da produção de carne hoje. A solução do problema da extinção de espécies envolverá a criação de novos habitats e organismos, possivelmente a partir do DNA de espécies extintas.

Na tentativa de resolver essas questões, inevitavelmente serão criados novos problemas. Uma objeção comum à tecnologia e ao desenvolvimento é que eles trarão consequências não intencionais. Mas a vida na Terra sempre foi uma história de consequências não intencionais. As comportas de Veneza representam um exemplo vívido. A preocupação dos ambientalistas de que as comportas teriam grande impacto na vida marinha foi confirmada - mas não da maneira que se temia. Apesar de as comportas ainda estarem em construção, biólogos marinhos anunciaram que elas já abrigam muitas espécies de corais e peixes, algumas das quais existentes apenas no sul do Mediterrâneo e no Mar Vermelho.

Outros críticos das comportas questionaram o que aconteceria caso o aquecimento global aumentasse o nível do mar a uma altura maior que a das comportas. Se isso se tornar inevitável, é improvável que os venezianas abandonem sua cidade. Em vez disso, eles tentarão reerguê-la. Uma proposta irônica seria erguer a cidade por meio da injeção de dióxido de carbono 2 metros abaixo do fundo da laguna. Alguns podem até pensar que uma fé tão forte na solução tecnológica é um exemplo de arrogância, mas outros entenderão isso simplesmente como compaixão.

Se o Brasil se tornar um poder ecológico mundial, ele deverá adotar as suas capacidades tecnológicas, em vez de rejeitá-las. Do etanol de cana à soja do cerrado e ao pré-sal, décadas de investimento estatal na tecnologia destravaram o crescimento econômico do Brasil - e também trouxeram consequências negativas, como o desmatamento, a poluição e as dificuldades associadas às migrações rurais-urbanas. Agora, as capacidades tecnológicas do Brasil podem ser usadas para intensificar a agricultura, preservar florestas antigas ecologicamente valiosas, ajudar nações pobres a se adaptar a um mundo mais quente e desenvolver fontes mais limpas de energia.

O antropólogo francês Bruno Latour tem alguns pensamentos interessantes sobre o assunto. De acordo com Latour, o Frankenstein de Mary Shelley não é uma fábula contra a arrogância, mas sim contra o medo irracional da imperfeição. O Dr. Frankenstein é um anti-herói não porque ele criou a vida, mas porque fugiu aterrorizado ao confundir sua criação com um monstro - uma profecia que causa sua própria realização. A moral da história, no que diz respeito à salvação do planeta, é que devemos tratar nossas criações tecnológicas da mesma maneira que trataríamos nossos filhos, com amor e carinho, para que o nosso abandono não as transforme em monstros. Escreve Latour: "O pecado não é desejar ter domínio sobre a natureza, mas acreditar que esse domínio significa emancipação e não o estabelecimento de laços". Em outras palavras, o termo "arrogância ecológica" não deve ser usado para descrever o desejo humano de refazer o mundo, mas sim a fé em que podemos pôr fim ao ciclo de criação e destruição.

Este texto foi escrito pelos antropólogos americanos Michael Shellenberger e Ted Nordhaus especialmente para VEJA. Eles são autores de um texto clássico no avesso do lugar-comum: A Morte do Ambientalismo, de 2004. Hoje lideram um instituto - o Breakthrough - cujo objetivo é pôr o dedo em feridas até hoje intocáveis

Inclusão escolar em debate



Autor(es): » ANA POMPEU
Correio Braziliense - 12/06/2012
 

Relator do Plano Nacional de Educação, em tramitação no Congresso, defende repasse de recursos federais às instituições voltadas ao atendimento de alunos com necessidades especiais. Texto original, do MEC, prevê que estudantes frequentem salas de aulas regulares
Todo brasileiro tem direito inalienável à educação. Está na Constituição Federal. Mas uma parcela da população se sente à margem da sociedade, sem esse princípio assegurado. Aqueles que possuem algum tipo de deficiência, física ou intelectual, não encontram o mesmo espaço que os outros estudantes nas instituições de ensino. A discussão em torno da inclusão desses alunos com necessidades especiais ganha corpo com a proximidade da votação do Plano Nacional de Educação (PNE) no Congresso Nacional, prevista para ocorrer na comissão especial que trata do tema na Câmara dos Deputados entre amanhã e quarta-feira.
A primeira versão do documento, enviada pelo Ministério da Educação (MEC), previa que todo estudante deveria ser matriculado no ensino regular, acabando com as escolas especiais ou salas separadas para alunos com necessidades específicas. Ao chegar à Câmara, no entanto, o relator do PNE modificou a redação da Meta 4, que diz respeito à educação especial. Na visão do deputado Ângelo Vanhoni (PT-PR), o respeito à diversidade passa pelo atendimento diferenciado. Se a proposta for aprovada como está, as escolas e classes exclusivas voltam a receber incentivo do governo, como atendimento complementar ou quando as condições do aluno não permitirem a integração em salas comuns.
A reportagem do Correio ouviu pesquisadores e especialistas em educação especial sobre a mudança na redação da Meta 4 e as consequências que ela pode provocar no sistema de ensino. Entre os estudiosos, o único consenso é que o país precisa encontrar um meio de assegurar o direito à educação a todas as pessoas. Além das salas e escolas exclusivas das redes de ensino, a meta retoma a discussão do papel das instituições privadas e filantrópicas especializadas no tratamento e desenvolvimento educacional de quem tem deficiência.
A posição defendida pela doutora em educação Maria Teresa Eglér Mantoan, do movimento Inclusão Já, é categórica. Para ela, colocar crianças em salas ou escolas especiais é discriminatório. "Elas têm de estar em salas comuns e ter atendimento especializado no contraturno. A educação especial como se defende na emenda do relator é um modelo que está ultrapassado", critica. Ela enfatiza ainda que as salas comuns devem receber alunos com qualquer problema, já que o ideal é que a instituição se adapte ao estudante, e não o contrário.
Para ela, só assim as redes de ensino vão se preparar adequadamente para conviver com a diversidade e promover o fim do preconceito. "Temos de encarar. Essa não é uma posição isolada, mas uma política consolidada pelo Executivo, corroborada por especialistas nacionais e organismos internacionais. A desculpa de que não dá para fazer porque não há preparo não tem mais vez", defende.
Complementação
No entanto, na avaliação do deputado Ângelo Vanhoni, relator da proposta na Câmara, ocorreu um mal-entendido quanto ao relatório final. "O texto avançou bem no ponto de vista da inclusão e está de acordo com a Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB). O aluno da educação especial precisa de uma complementariedade em entidades conveniadas com o poder público", ressalta o deputado. De acordo com ele, o texto não diverge com a política estabelecida pelo Estado.
A presidente da União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação, Cleuza Repúlio, concorda com o deputado quando ele diz que a educação regular não exclui a especial. Mas ela faz ressalvas quanto ao local onde o estudante com necessidades específicas vai receber apoio. "Reconhecemos as entidades que há anos trabalham com deficiência, mas educação deve ser dada nas escolas regulares", constata.
Enquanto a discussão fica em torno da existência das escolas especializadas, a professora da Faculdade de Educação da Universidade de Brasília (UnB) Amaralina Miranda de Souza preocupa-se com a qualificação profissional dos professores. "A pior exclusão que pode existir é jogar uma criança em uma sala regular sem considerar as necessidades que ela tem. Além de não participar do currículo, ela vai ser excluída do ponto de vista social. Não é possível instituir a inclusão via decreto", afirma.
Para ela, esses alunos foram historicamente separados do convívio com o restante dos estudantes. Por isso, o processo deve ser progressivo. Alunos egressos de escolas especiais podem não ser beneficiados se forem transferidos para as instituições convencionais. Os professores também têm de ter conhecimentos mínimos para compreender o nível de dificuldade do estudante e procurar o apoio necessário, o que deve começar nos cursos de pedagogia.
2011-2020
O Plano Nacional de Educação para a próxima década foi entregue pelo então ministro da Educação, Fernando Haddad, ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva em 15 de dezembro de 2010. Após aprovação no Congresso Nacional, servirá como diretriz para todas as políticas educacionais do país. O PNE 2011-2020 é composto por 12 artigos e um anexo com 20 metas para a Educação. A educação especial é tema da Meta 4. O texto prevê formas de a sociedade monitorar e cobrar cada uma das conquistas previstas.
Garantias legais
A educação especial foi discutida durante a Conferência Nacional de Educação (Conae) de 2010, que em seu documento final deliberou que a modalidade tem como objetivo assegurar a inclusão escolar de alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação nas turmas comuns do ensino regular. O direito a um sistema educacional inclusivo em todos os níveis está descrito no artigo 24 da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, da Organização das Nações Unidas (ONU), de 2006, ratificada no Brasil com status de Emenda Constitucional.

sexta-feira, 8 de junho de 2012

O BRASIL NA ENCRUZILHADA

O PAÍS CRESCEU ECONOMICAMENTE, CONSOLIDOU SUA DEMOCRACIA E GANHOU RELEVÂNCIA GEOPOLÍTICA - O QUE FALTA PARA VIRARMOS UMA NAÇÃO DESENVOLVIDA?
Época - 04/06/2012

A auxiliar de limpeza Gilvanete Maria de Souza, de 49 anos, se orgulha dos diplomas universitários dos dois filhos. A mais velha, Rafaele, de 28 anos, fez faculdade de ciências biológicas, com uma bolsa financiada pelo governo. Rafael, de 25 anos, formou-se em recursos humanos numa universidade particular bancada pelos pais - ambos não cursaram ensino superior. Gil, apelido pelo qual é conhecida, fez magistério. O marido, o metalúrgico aposentado Reginaldo Alves de Souza, de 57 anos, parou de estudar na 5ª série.

Os dois acreditam que a educação é garantia de futuro. “Tem de estudar hoje para ser o patrão de amanhã”, diz Gil. Antes da faculdade, os filhos dela e de Reginaldo sempre estudaram em escola pública. Em 1985, o casal saiu de Gravataí, em Pernambuco, para buscar oportunidades em São Paulo. A primeira casa, um “quarto e cozinha” na região metropolitana, era alugada. Alguns anos depois, compraram um barraco de madeira na favela de Heliópolis, na periferia da capital.

Naquela época, Gil trabalhava em dois turnos: de manhã como auxiliar de serviços e à tarde como vendedora de doces e salgadinhos, na porta de casa, para complementar o salário do marido. Na última década, que coincidiu com a mudança para Ribeirão do Sul, no interior de São Paulo, a qualidade de vida da família deu um salto. “Hoje temos garagem, portão de ferro, dois banheiros e uma despensa”, afirma Gil. Dentro de casa, ela tem cozinha equipada com eletrodomésticos, uma máquina de lavar roupas novinha (a anterior fora comprada usada) e TV de tela plana.

A família Souza é o símbolo do novo Brasil. Assim como eles, cerca de 40 milhões de brasileiros deixaram a pobreza para ingressar na sociedade de consumo. Esse grupo, genericamente chamado de nova classe média, configura hoje a maioria da população brasileira e faz parte de um exército de 105 milhões de consumidores que constituem o aspecto mais visível do novo Brasil.

Mas o novo Brasil não é formado apenas pela nova classe média. Cresceu também no país o número de ricos e o acesso a bens de todo tipo - daqueles que suprem as necessidades mais básicas aos mais luxuosos. A reportagem da página 124 conta a história de brasileiros de todas as classes sociais que colheram os frutos dessa nova realidade e realizaram seus sonhos. Uns conseguiram seu primeiro sapato ou fizeram sua primeira viagem de avião, outros compraram seu primeiro helicóptero, seu primeiro barco ou fizeram sua primeira cirurgia plástica. Todos são o retrato vivo deste novo Brasil - um país que deixou para trás a inflação, consolidou-se como democracia, construiu a sexta economia do mundo, diminuiu a desigualdade e passa a ser percebido, pela comunidade das nações, como potência emergente, capaz de influenciar, pacificamente, os grandes debates internacionais. É possível reconhecer no país de 2012 alguns traços da instável república de 1952 - ano em que foi fundada a Editora Globo. Mas é inevitável constatar que ocorreu uma mudança profunda. O país mudou a ponto de tornar-se outro.

Nenhuma mudança foi tão notável, e tão cara aos brasileiros, quanto a maturação da democracia. Entre o segundo governo de Getúlio Vargas, em 1952, e o atual governo da presidente Dilma Rousseff, o Brasil viveu de tudo em sua vida pública. Houve o suicídio de um presidente (o próprio Getúlio, em 1954), a renúncia de outro (Jânio Quadros, em 1961), um golpe de Estado (em 1964, que produziu um regime militar que duraria até 1985) e o impeachment do presidente Fernando Collor, em 1992. O país tem tido democracia com normalidade desde 1995. O número de eleitores aumenta a cada ano. Na primeira eleição depois do fim do regime militar, 76 milhões de brasileiros foram às urnas. Hoje, os eleitores são mais de 135 milhões, quase dois terços da população. A democracia brasileira ainda é jovem. Houve apenas seis eleições consecutivas. Mas trata-se de um marco histórico desde a República Velha. O país que foi às ruas em 1984 exigindo Diretas Já vive o período democrático mais longo de sua história, sob a égide da Constituição de 1988.

É inegável também nosso progressivo amadurecimento institucional, com Poderes independentes e atuantes - o Supremo Tribunal Federal se tornou uma corte constitucional que funciona nos moldes das melhores democracias do mundo. Houve ainda avanços em gestão pública, com dispositivos que garantem a solidez de nossos fundamentos econômicos, como a Lei da Responsabilidade Fiscal e uma visão mais técnica e menos ideológica dos juros e da inflação. Houve, por fim, o reconhecimento quase unânime de que o maior desafio do Brasil de hoje é a educação.

A maior dúvida neste momento da história brasileira diz respeito aos limites da transformação que vivemos. O país enfrenta desafios gigantescos - e o modelo que perseguiu até agora será incapaz de superá-los. Os gargalos nas estradas, nos portos, aeroportos e na geração de energia limitam nosso crescimento econômico e a geração de mais riqueza para a população. Embora quase todas as nossas crianças estejam na escola, a qualidade do ensino brasileiro é sofrível em comparação com outros países, e a formação de nossa mão de obra qualificada é deficiente. O Brasil se tornou um exportador notável de commodities e matérias-primas, mas está pouco preparado para competir na economia do conhecimento, em que o crescimento se sustenta sobre as inovações científicas e tecnológicas. Acima de tudo, a Constituição de 1988 trouxe avanços notáveis na garantia de direitos civis - mas gerou um custo gigantesco para a sociedade ao assegurar direitos sociais insustentáveis economicamente. Felizmente, dispomos da ferramenta essencial para vencer nossos desafios econômicos e sociais: o voto.

Enfrentá-los exigirá dos brasileiros, porém, uma mudança de mentalidade. O novo Brasil de hoje precisa encontrar uma identidade nova. Quem somos nós, afinal? Uma democracia com instituições sólidas, transparentes e impessoais - ou uma sociedade em que ainda imperam as relações de privilégio, favorecimento e compadrio? Uma economia pujante e inovadora, capaz de exportar produtos com alto conteúdo tecnológico - ou um mercado fossilizado por leis trabalhistas anacrônicas, uma carga tributária escorchante e uma burocracia infernal? Um povo meritocrata, capaz de encarar o sucesso individual como principal motor do crescimento - ou uma nação que enxerga o Estado como provedor e almeja uma zona de conforto sob sua proteção? Para nos tornarmos um país desenvolvido, será necessário superar essas contradições e demonstrar, em cada uma dessas questões, que o país escolheu a primeira alternativa de modo inequívoco.

As escolas são o elo mais fraco na cadeia do desenvolvimento brasileiro. O Brasil de 1952 tinha poucas escolas públicas, que educavam apenas 26% dos jovens em idade escolar, uma fração mínima e privilegiada da população. Em 2012, a situação se inverteu: 98% dos jovens estão nas escolas. Mas a educação que recebem está aquém das necessidades do país e das legítimas aspirações de quem se senta nas salas de aula. É isso que precisa mudar.

Somos um país em que 50% das crianças do 5º ano em todos os Estados são semianalfabetas. Dos 3,5 milhões de alunos que ingressam no ensino médio, apenas 1,8 milhão se formam. O Brasil apresenta um dos cinco piores resultados entre os 56 países avaliados regularmente pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico. Isso significa que, todo ano, jogamos milhões de adolescentes despreparados no mercado de trabalho, sem perspectiva de ascensão social e econômica. Eles são o aspecto mais doloroso de nosso apagão de mão de obra.

A importância da educação para a ascensão social pode ser medida pelas estatísticas que avaliam a participação da mulher na moderna sociedade brasileira. Há mais alunas matriculadas nas universidades que alunos, mesmo nos cursos historicamente dominados pelos homens. Também há mais mulheres cursando mestrado e doutorado. Por causa disso, nos últimos dez anos a renda feminina cresceu o triplo da masculina. Isso comprova, sem uma nesga de dúvida, que a escola continua sendo o atalho mais rápido para o crescimento pessoal e da economia.

O Brasil que precisa educar melhor seus jovens também precisa encontrar um novo balanço entre o Estado e a sociedade. Necessária, a máquina pública brasileira é cara e ruim. Ela gasta onde não há necessidade, em benefício de si mesma, e economiza onde seria essencial - na educação, na segurança, na saúde, nos investimentos em infraestrutura. Nosso Estado pantagruélico produz, como contrapartida, contribuintes extorquidos e cidadãos mal atendidos. Trata-se de uma situação incompatível com o desenvolvimento de longo prazo. O Brasil precisa de uma nova equação de crescimento que nos impulsione pelos próximos 60 anos. De 1952 para cá, o Estado exerceu um papel importante para a atividade econômica. Agora, os tempos exigem que ele melhore sua gestão, gaste menos, concentre-se naquilo de que o país realmente necessita.

Graças ao peso que o Estado exerce sobre a economia - drenando riqueza e poupança -, o Brasil tem investido anualmente apenas 2,5% do Produto Interno Bruto (PIB) em obras de infraestrutura, menos que os 3% recomendados pelo Banco Mundial e, mais grave, menos do que investem os outros países do G20. A modernização de estradas, aeroportos, portos e sistemas de geração de energia será crucial para definir se o Brasil terá condições de continuar no grupo das nações que mais crescem no mundo - e de continuar aspirando a uma vaga no time dos países desenvolvidos. Ela não será possível sem mais recursos para investimentos.

Nas grandes cidades, onde vive 84% da população brasileira, a situação dos transportes tornou-se dramática. Só em São Paulo, 1,5 milhão de pessoas deslocam-se todos os dias da Zona Leste em direção ao centro. Cidades como Recife, Porto Alegre ou Manaus, onde congestionamentos eram incomuns há dez anos, hoje são igualmente engarrafadas. Dos quase 80 milhões de veículos que circulam no país, 462 mil são ônibus. O metrô, alternativa de transporte coletivo adotada noutros países há séculos, ainda é incipiente. As linhas de São Paulo, Belo Horizonte, Recife, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Brasília têm, somadas, cerca de 230 quilômetros. Só a cidade de Nova York tem mais de 1.055 quilômetros. Isso explica as aglomerações cada vez maiores nas plataformas. Acabar com elas também exigirá mais investimentos em infraestrutura.

Apesar dos gargalos, o avanço brasileiro das últimas seis décadas na economia tem sido assombroso. O país que importava todos os seus automóveis na década de 1950 é hoje o terceiro maior produtor de carros do mundo. Fabricamos também aviões, satélites, aparelhos eletrônicos. Exploramos petróleo em águas profundas e exportamos milhões de toneladas de alimentos por ano. Mas aí também o peso do Estado se faz sentir. A indústria brasileira só não avança de forma mais rápida devido à tortuosa estrutura trabalhista e tributária, que encarece o produto nacional e o torna presa fácil da competição internacional, dentro e fora do país.

Um dos resultados da nova prosperidade brasileira foi a descentralização econômica e o crescimento acentuado das regiões Norte, Centro-Oeste e Nordeste. Na última década, elas aumentaram dramaticamente sua participação no PIB. O Nordeste é o principal protagonista dessa descentralização. O PIB da região cresce acima da média nacional desde

2008. Bahia e Pernambuco são responsáveis pela guinada, mas Estados historicamente atrasados despontam na corrida estatística. O Piauí registrou o maior crescimento do PIB entre 2002 e 2009, quase o dobro do desempenho brasileiro. A população que antes migrava para o Sul, em busca de melhores condições de vida, está voltando para casa. Pernambuco foi o Estado de maior fluxo migratório de retorno: 23,61% dos que saíram na última década voltaram.

Com as obras da Copa do Mundo de 2014, que se espalham por todo o país, espera-se um avanço rápido em infraestrutura. Além de erguer estádios, o Brasil terá de investir na construção de hotéis, hospitais e na ampliação do transporte público. O desafio é deixar tudo pronto no prazo (em 1950, o Maracanã estreou na Copa sem estar pronto) e dentro do orçamento. A consultoria Value Partners calcula que a Copa poderá gerar R$ 183,2 bilhões até 2019. Será também uma chance de mostrar ao mundo o que o Brasil tem de melhor -e de ganhar em casa o sexto título mundial.

Logo depois da Copa, em 2016 o Rio de Janeiro receberá os logos Olímpicos. Será a primeira vez na história da América Latina. São esperados mais de 10 mil atletas de 205 países, sem contar milhares de turistas. A promessa do projeto do Rio Olímpico, orçado em quase R$ 25 bilhões, é deixar de herança para os cariocas uma cidade renovada.

A transformação vai além da reforma de estádios. A infraestrutura em construção redesenhará a paisagem da cidade, com o surgimento de novas vias, novos modelos de transporte público e recuperação de áreas degradadas. O Parque Olímpico, orçado em R$ 1,4 bilhão, foi projetado para dar lugar a um bairro nobre de 1,2 milhão de metros quadrados, para 30 mil moradores. As obras em torno do estádio do Maracanã, onde será realizada a abertura dos Jogos (e, antes disso, a final da Copa do Mundo em 2014), revitalizarão três bairros históricos adjacentes ao estádio. O impacto será sentido também na vida cultural dos cariocas. Seis museus e centros culturais serão abertos nos próximos quatro anos. O Museu da Imagem e do Som, localizado no centro da cidade desde 1965, muda-se para a nobre Copacabana, num prédio de sete pavimentos e arquitetura contemporânea. Além dele, o Museu do Amanhã e o Museu de Arte do Rio prometem ajudar a revitalizar a zona portuária.

A Copa de 2014 e os Jogos Olímpicos de 2016, quando estaremos sob os olhos de todos, serão vitrines para apresentar o novo Brasil ao mundo. Até lá, precisaremos avançar em todos os nossos desafios, para que a imagem transmitida esteja mais próxima daquilo que almejamos ser. O país cresceu com democracia, estabilizou a moeda com distribuição de renda, tornou-se relevante internacionalmente sem se armar. Tenta proteger a natureza sem abrir mão do desenvolvimento. Mostrou, enfim, que sabe superar impasses. O jeito brasileiro de fazer as coisas nem sempre é rápido. Depende de nós fazê-lo funcionar.

Mobilidade Social

A nova cara da família brasileira

A família da auxiliar de limpeza Gilvanete Maria de Souza, de 49 anos, e seu marido, o metalúrgico aposentado Reginaldo Alves de Souza, de 57 anos, tem a cara do novo Brasil. Ela fez o magistério, ele parou de estudar na 5° série. Agora, os dois têm orgulho dos dois filhos, Rafaele e Rafael, que concluíram a faculdade. O casal saiu do interior de Pernambuco em 1985, trabalhou duro para viver na periferia da cidade de São Paulo e, dez anos atrás, mudou-se para o interior do Estado. No trajeto, compraram bens antes inacessíveis, acumularam conquistas pessoais e, literalmente, mudaram de classe social. Assim como eles, cerca de 40 milhões de brasileiros deixaram a pobreza para ingressar na classe média na última década. Esse grupo, hoje a maioria da população brasileira, forma um exército de 105 milhões de consumidores. Ele está transformando o país ao transformar sua própria vida - e seu sucesso testemunha, além do crescimento econômico do Brasil, a esperada queda da desigualdade.

Indústria

O voo da produção nacional

O caminho das nações rumo ao desenvolvimento costuma incluir um trecho difícil de superar: encontrar uma vocação para sua indústria. Desde os tempos da Companhia Siderúrgica Nacional, a indústria brasileira passou de produzir aço a fabricar aeronaves. A Embraer se destaca como a terceira maior fabricante de aviões do planeta. Seu sucesso está ligado ao caráter inovador que soube imprimir ao negócio depois da privatização. Seu centro de simulação e realidade virtual, em São José dos Campos, é uma prova de como o conhecimento técnico e científico é fundamental para a competitividade de nossa indústria. Outra questão central é gerar um ambiente favorável à produção, debelando o caos tributário e investindo em qualificação profissional. Só assim será possível à indústria obter os ganhos de produtividade necessários para concorrer com economias mais ágeis. Já superamos o desafio de fabricar. Está na hora de exportar ideias.

A nova mulher

O mundo é delas, cada vez mais

Figura central de uma das revoluções mais importantes do século passado, a nova mulher ajudou a moldar a moderna sociedade brasileira. É ela quem decide tudo em mais de um terço das famílias. Há mais alunas matriculadas nas universidades que alunos. No mercado de trabalho, ainda ganham menos que os homens - mas essa diferença diminui rapidamente. Nos últimos dez anos. a renda feminina cresceu o triplo da masculina. De acordo com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), somando o emprego e os afazeres domésticos, a mulher trabalha 12 horas a mais por semana que o homem. A sociedade, que antes as impedia de seguir carreira, hoje cobra delas excelência profissional - sem abrir mão da rotina doméstica. O principal desafio da mulher brasileira é encontrar o equilíbrio entre trabalhar demais e educar os filhos, entre cuidar da carreira e cuidar da família.

Democracia

Um país feito por eleitores

O país que foi às ruas em 1984 exigindo Diretas Já vive, desde 1989, ano da primeira eleição presidencial pós-ditadura, o período democrático mais longo de sua história. Só para presidente, foram seis pleitos realizados de maneira livre, direta e universal, sob a égide da Constituição de 1988. Sem contar as eleições estaduais, municipais, plebiscitos e referendos, como aquele que impediu a divisão do Estado do Pará em 2011. Desde a redemocratização, o número de eleitores aumenta a cada ano. Na primeira eleição depois do fim da ditadura militar, 76 milhões de brasileiros foram às urnas. Hoje, os eleitores são mais de 135 milhões, quase dois terços da população. Nesse intervalo, o sistema de votação eletrônico do Brasil tornou-se um exemplo internacional.

Indústria

O novo motor do país

O Sudeste ainda é a região que mais produz riquezas, mas agora o crescimento brasileiro acontece de forma equilibrada. As regiões Norte, Centro-Oeste e Nordeste aumentaram sua participação no Produto Interno Bruto (PIB) na última década. O PIB do Nordeste cresce acima da média nacional desde 2008. Mesmo Estados historicamente atrasados despontam na corrida estatística. O Piauí registrou o maior crescimento do PIB entre 2002 e 2009, o dobro do desempenho brasileiro. A população que antes migrava para o Sul está voltando para casa. Para Pernambuco, voltaram 23,61% dos que saíram na última década. Para tornar sustentável o crescimento, regiões emergentes precisam investir em educação. "É o caminho para garantir a igualdade entre a população nordestina e a do resto do país”, diz Alexandre Barros, da Universidade Federal de Pernambuco.

Problemas urbanos

A cidade e as multidões

Perto de 84% da população do país vive em áreas urbanas - 160 milhões de pessoas. Sem planejamento, o crescimento das cidades veio acompanhado de problemas de difícil solução. Mais de 11 milhões vivem em favelas, em geral longe do centro. A concentração de moradores em locais distantes é uma das causas do nó do transporte que aflige as regiões metropolitanas. Cidades como Recife, Porto Alegre e Manaus, onde congestionamentos eram incomuns, hoje vivem engarrafadas. Dos quase 80 milhões de veículos que circulam no país, 462 mil são ônibus. O metrô ainda é insuficiente. As linhas de São Paulo, Belo Horizonte, Recife, Rio de Janeiro, Porto Alegre e Brasília têm, somadas, 230 quilômetros. Só a cidade de Nova York tem mais de 1.055 quilômetros. O desafio é criar novas políticas de moradia e investir no transporte de massa.

Rio Olímpico

Uma cidade renovada

Em 2016, o Rio de Janeiro receberá o maior evento esportivo do planeta.

Será a primeira vez que a América Latina sediará os Jogos Olímpicos e Paraolímpicos. A promessa do projeto do Rio Olímpico, orçado em R$ 25 bilhões, é deixar de herança para os cariocas uma cidade renovada. A infraestrutura em construção redesenhará a paisagem da cidade com novas vias, novos modelos de transporte público e recuperação de áreas degradadas. O Parque Olímpico, orçado em R$ 1,4 bilhão, foi projetado para dar lugar a um bairro nobre para 30 mil moradores. As obras em torno do estádio do Maracanã revitalizarão três bairros históricos adjacentes. O impacto será sentido também na vida cultural. Seis museus e centros culturais serão abertos nos próximos quatro anos. O Museu da Imagem e do Som muda-se para Copacabana. O Museu do Amanhã e o Museu de Arte do Rio prometem revitalizar a zona portuária.

Copa do mundo

Os donos da bola

Pela segunda vez na história, o Brasil se prepara para sediar a Copa do Mundo. Talvez por causa da dolorosa derrota para o Uruguai na final de 1950. em pleno Maracanã, alguns bateram na madeira três vezes quando o país foi escolhido. Ou talvez porque a mistura de futebol, dinheiro, obras enormes e prazos draconianos pode produzir desastres. O pais se prepara para receber, em 2014.32 seleções e suas comitivas. Elas farão 64 partidas em 12 capitais, sob os olhos do mundo. A tarefa de um país sede não é pequena. Alguns estádios, como o Itaquerão, em São Paulo, são erguidos do zero. O trabalho se estende para a infraestrutura extra, que envolve hotéis, hospitais e ampliação do transporte público. O desafio é deixar tudo pronto no prazo e sem estourar demais o orçamento inicial, de R$ 22 bilhões. Depois, é chutar para o gol e correr para o abraço.

Infraestrutura

Na fila para o futuro

O Brasil investe 2,5% do Produto Interno Bruto (PIB) em infraestrutura. É menos que os 3% recomendados pelo Banco Mundial e muito menos que outros países do G20. Os gargalos são inúmeros - da energia aos portos, das estradas aos aeroportos. Um dos mais críticos está no setor de transportes. O pais depende basicamente de estradas, mas poucas têm bom estado de conservação (33,8% dos 57.000 quilômetros de rodovias federais). As ferrovias respondem por 25% das cargas transportadas, mas o ideal é que escoassem 40%. As hidrovias não atingem nem 3% da movimentação, quando poderiam chegar a 20%. Grandes projetos do governo em parceria com o capital privado nessa área estão emperrados. As empresas privadas podem participar, mas cabe ao governo criar as condições para que isso ocorra. Na falta de infraestrutura adequada, filas como a dos caminhões no Porto de Paranaguá serão mais comuns.

Ciência e Tecnologia

Yes, nós temos pesquisa

O avanço da pesquisa brasileira nos últimos 60 anos pode ser medido em números. O país que tinha 80 pós-graduados na década de 1950, todos formados na Europa ou nos Estados Unidos, fechou 2011 com um quadro de 200 mil pesquisadores e mais de 30 mil artigos publicados apenas naquele ano. Na pesquisa de biotecnologia, o pais ocupa o quinto lugar no ranking mundial. A Embrapa é responsável por 10% de toda a tecnologia agrícola produzida no mundo. Os investimentos em pesquisa e desenvolvimento triplicaram na última década. Mas a pesquisa precisa sair dos laboratórios e virar inovação. Três quartos dos cientistas do país estão nas universidades. Nos Estados Unidos, 80% deles trabalham em empresas privadas. Chegou a hora de fazer a excelência da pesquisa brasileira virar negócio.

Ambiente de negócios

Um país hostil para o empreendedor

O corte de impostos nunca foi um tema capaz de seduzir o eleitor brasileiro. Não deveria ser assim. Vivemos uma perversa combinação de leis trabalhistas anacrônicas, carga tributária escorchante e uma burocracia infernal que dificulta a vida de qualquer um que queira empreender e gerar riqueza no pais. Na semana passada, o impostômetro - placar da Associação Comercial de São Paulo que mede a arrecadação total do país - quebrou um novo recorde, ao ultrapassar os R$ 600 bilhões. Trabalhamos até o último dia 29 apenas para sustentar o governo. Entre os 30 países com maior carga tributária, o Brasil tem o pior desempenho em serviços para a população. E não é só isso. Para cada salário pago a um funcionário, é preciso pagar outro em impostos ao governo. Isso gera desemprego e prejudica a competitividade da nossa economia. Será impossível manter um papel de destaque no cenário global se o Brasil não conseguir se tornar mais hospitaleiro para o empreendedor.