sexta-feira, 9 de abril de 2010

Evo Morales e o paradoxo populista


Autor(es): r Roberto Laserna
Valor Econômico - 09/04/2010

Apesar dos discursos oficiais, o governo de Evo Morales beneficia-se principalmente do funcionamento do mercado

Evo Morales foi bem-sucedido em reformar a constituição da Bolívia e ser reeleito presidente do país. Recentemente, sustentado por sua maioria parlamentar, também teve condições de preencher postos judiciais vagos, tornando-se o presidente mais poderoso na história contemporânea boliviana.

De acordo com seus oponentes, Morales reproduz a tradição do "caudillismo", concentrando poder em suas mãos e tornando as instituições governamentais meras formalidades. Sua imensa popularidade nos últimos cinco anos, no entanto, sugere que a maioria dos bolivianos não parece muito preocupada em colocar a democracia do país em risco.

O sucesso de Morales reside amplamente no paradoxo do populismo. Embora ele afirme opor-se ao liberalismo econômico, ele é produto das liberdades políticas que esse liberalismo promove e alimenta-se dos benefícios gerados pela economia de mercado.

Morales nasceu em uma família camponesa no altiplano andino e depois se estabeleceu na região de Chapare, no início do grande avanço da coca. Sua carreira como líder sindical o tirou da agricultura para colocá-lo na política, área na qual se destacou por suas críticas aos Estados Unidos, cuja cruzada antidrogas almejava a erradicação de uma cultura rentável para os camponeses mais pobres.

Ao defender a folha de coca, consumida há séculos no mundo andino e matéria-prima para a cocaína, Morales teve condições de unir sua oposição à política antidrogas dos EUA com a defesa da tradição cultura nativa e os direitos econômicos dos pobres. Sua liderança agregou três dimensões muito simbólicas: o sentimento nacionalista, a preocupação com os pobres e o emergente orgulho étnico entre a população nativa da Bolívia.

A construção de Morales como um líder capaz de combinar essas três dimensões reflete duas reformas institucionais realizadas nos anos 90, que expandiram a participação social e abriram oportunidades para novos líderes e movimentos políticos. A divisão do país em municipalidades transferiu recursos tributários e capacidade de tomada de decisões para as comunidades, permitindo que sindicatos agrícolas controlassem várias cidades e assumissem responsabilidades administrativas. Isso levou à formação de novos partidos políticos, enquanto a criação de conselhos regionais em 1997 tornou possível que líderes com fortes raízes locais - como Morales - chegassem ao congresso boliviano sem o apoio de grandes partidos.

Uma vez situado no centro da cena política, o congressista Morales aproveitou-se de sua imunidade constitucional para intensificar suas atividades sindicais e sua luta contra as políticas antidrogas. Nas eleições de 2002, Morales recebeu um impulso inesperado do embaixador dos EUA, que, ao se declarar contrário a Morales, estimulou o sentimento nacionalista.

Morales prosseguiu até vencer as eleições presidenciais em 2005 com maioria absoluta. Os outros partidos facilitaram seu caminho ao desacreditarem uns aos outros, deixando até de defender seus próprios feitos nos 20 anos anteriores. Dois outros fatores que tornaram a ascensão de Morales possível foram o renascimento da indústria petrolífera boliviana e a criação de mecanismos para distribuir a renda produzida pelo petróleo. Ambos, agora sustentam seu governo.

Os investimentos privados em meados dos anos 90 elevaram a produção de gás natural. Em pouco tempo o gás estava sendo exportado - com altos lucros - ao Brasil. Portanto, quando Morales chegou ao poder, a economia da Bolívia estava posicionada para aproveitar a alta dos preços mundiais das matérias-primas. Como resultado, a arrecadação aumentou, apesar das políticas nacionalistas e estatistas, que afastaram investimentos e dificultaram o acesso a novos mercados.

Desde 2005, as exportações bolivianas cresceram seis vezes, da mesma forma que a arrecadação fiscal. Esse dinheiro é distribuído automaticamente aos governos locais, de acordo com um modelo estabelecido pelos antecessores de Morales, levando recursos aos pontos mais longínquos do país. Não são apenas os governos locais os que se beneficiam; por meio de transferências de dinheiro criadas durante os anos chamados de neoliberais, as famílias também saíram ganhando, principalmente com benefícios previdenciários universais e não colaborativos cedidos às pessoas com mais de 60 anos, um programa que chega a pouco mais de 30% das famílias do país.

Nos últimos anos, foram criados programas de auxílio a estudantes em escolas públicas e de assistência a mulheres grávidas em centros médicos, mas seu impacto é mais político do que econômico. De fato, as iniciativas econômicas de Morales normalmente revelam-se vazias, como seus acordos com a Venezuela, de fornecimento de hidrocarbonetos, e com a Índia, de ferro. Seu plano para explorar e industrializar os campos de gás do país continua apenas uma promessa.

A economia boliviana cresceu de forma moderada sob a administração de Morales, graças à demanda internacional e às transferências de dinheiro do Estado para os governos locais e pessoas físicas. Essas transferências não apenas aumentaram o consumo das famílias, mas também trouxeram oportunidades de comércio, tanto no setor formal como no informal, o que as tornam as políticas mais bem-sucedidas na luta contra a pobreza.

Portanto, apesar dos discursos oficiais voltados a apoiar a intervenção do Estado, o governo Morales beneficia-se principalmente do funcionamento do mercado. O fracasso dos projetos e planos estatais é desconsiderado, por causa do mercado interno, que, embora pequeno, está em expansão e é estimulado liberalismo econômico de fato envolvendo o crescimento no contrabando e tráfico de drogas. Essas atividades ilícitas, embora não intencionalmente, aumentam a renda de camponeses, transportadores, construtores e empresários.

Esse é o paradoxo do socialismo do século XXI: o liberalismo econômico é a base da política que aspira a substituí-lo. Essa também pode ser sua maior limitação como projeto político.

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