segunda-feira, 10 de maio de 2010

JOÃO UBALDO RIBEIRO No tempo do livro

O GLOBO - 09/05/1O

Ah, nem conto a vocês como era, fico com medo de acharem que estou
mentindo. Mas sei que não estou, quando lembro o dia começando a se
esgueirar por entre as frestas dos grandes janelões do casarão térreo
em que morávamos, e eu, menino de oito ou nove anos, pulando afobado
da cama, para mais uma vez me embarafustar pelo meio dos livros. Quase
febril, ansioso como se o mundo fosse acabar daí a pouco, eu nem sabia
com quem ia me encontrar e aonde viajaria, em nova manhã encantada.
Não havia problemas para eu me embolar com os livros, porque eles não
só estavam junto à minha cama, mas espalhados da cozinha ao banheiro,
em estantes para mim altas como torres, algumas das quais tão pejadas
que volta e meia estouravam, viravam cachoeiras de papel e vinham
abaixo, dando a impressão de que as paredes e o chão se dissolviam em
livros.

Problema havia na escolha, porque nenhum deles era proibido por meu
pai, a não ser, como muito depois ele me contou, os que ele queria que
eu lesse, me escondendo sem saber que tinha caído num ardil. Podia ser
mais um volume da coleção de Tarzan que eu já tinha lido praticamente
toda e não acabava nunca, porque repetia os favoritos. Não, talvez o
Dom Quixote, em dois tomos imponentes que eu mal conseguia sopesar e
cheio de palavras portentosas que eu não compreendia e não ousava me
esclarecer com o velho, porque já conhecia a resposta.

- Dicionário, jumento bípede - respondia ele. - E copie o verbete para
me mostrar depois.

- O que é verbete?

- Dicionário, miolo ralo. E copie esse também.

As gravuras de Gustave Doré que ilustravam as desditas do engenhoso
fidalgo, em imagens cheias de sombras e figuras desconhecidas, me
metiam medo mas eram irresistíveis e, mesmo sem entender direito o que
aquele livro tremendo me contava, eu sempre voltava a ele e muitas
vezes me pilhei devaneando em meio a um descampado e diante de
cata-ventos, na companhia de um magrelo em seu cavalo ainda mais magro
e de um gordo em seu burrico. Mas eu podia preferir ingressar na
Legião Estrangeira, relendo Beau Geste ou Beau Sabreur, que me
deixavam com sonhos de me alistar assim que completasse vinte anos,
para ir viver entre os lendários tuaregues e conquistar o amor da mais
linda princesa do deserto.

Ou podia ir para o Sítio do Picapau Amarelo. Quando Monteiro Lobato,
ainda hoje, para mim, um dos maiores escritores de todos os tempos, em
qualquer lugar, morreu e seu enterro foi mostrado pela revista O
Cruzeiro, demorei muito para acreditar. O sítio continuou a existir,
do mesmo jeito que o pó de pirlimpimpim, a viagem ao céu, o
saci-pererê e toda a mágica que o grande Lobato criou. Tanto assim que
peguei um caderno e comecei a escrever novas aventuras de Narizinho,
Emília e Pedrinho, até que meu pai olhou minha produção, disse que
estava mal escrita, me chamou de plagiário e me mandou ver no
dicionário o que isso queria dizer.

Desisti da empreitada, mas persisti em escrever, para desgosto do
velho, que até morrer lamentou que eu não fosse tabelião, como ele com
toda a razão queria.

Os outros meninos do bairro podiam não morar num mar de livros como eu
ou, ainda menos, ter um pai igual ao meu, mas não eram muito
diferentes. Jogávamos bola (eu, hoje craque do passado, era fominha),
brincávamos de médico com as meninas, fazíamos tudo o que as crianças
daquela época podiam fazer, mas todo mundo gostava de ler, porque ler
representava a liberdade e a fantasia. Comentávamos nossos heróis,
organizávamos empréstimos de livros e gibis e mentíamos
esplendidamente, em tertúlias em que acreditávamos nas histórias dos
outros, contanto que acreditassem nas nossas - era tudo a verdade de
nossas imaginações. A vã memória não distingue mais entre o que eu
contava e os outros contavam, mas isso não tem importância. Todos nós,
afinal, voávamos com Peter Pan e Sininho e alguns de nós namoraram com
a Wendy. Não houve um que não tivesse enfrentado piratas, descido ao
fundo do mar, ficado invulnerável a qualquer arma ou invisível à
vontade, decifrado códigos secretos, falado todas as línguas e vencido
todas as guerras e batalhas. Para isso, não tínhamos mais que os
livros, não precisávamos de mais que eles.

Mas isso era naquele tempo. Hoje, como nos informam a toda hora, os
livros estão mudando, aperfeiçoam-se cada vez mais. Para ler
modernamente, dever-se-á usar um dos muitos leitores eletrônicos que
já existem no mercado e que ainda vão surgir. Segundo uma notícia, um
desses aparelhos possibilita que seu usuário (não é mais leitor, é
usuário) interaja com as chamadas redes sociais na Internet. Suponho
que se lê um pedacinho e se manda um comentário via Twitter. Também
estarão disponíveis, em breve, livros com trilha sonora e com trechos
narrados por voz. Os romances e peças virão com clipes dos cenários
descritos pela narrativa, entrevistas com o autor, facilidade em
substituir palavras difíceis por sinônimos acessíveis, interatividade
com o usuário ("faça seu final, case Romeu com Julieta") - o céu é o
limite.

Acredito que, em relação a isso, vale uma comparação com o celular, o
qual começou como telefone, mas hoje é máquina fotográfica, batedeira
de bolos e ferro de passar e desconfio que está substituindo o(a)
parceiro(a) sexual. Admirável livro novo, que faz uma maravilha atrás
da outra e nem puxa pela imaginação, tudo já vem imaginado para você.
Espero que, tão famosamente equipado, o usuário ainda encontre um
tempinho para ler.

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