Autor(es): Gilson Caroni
Jornal do Brasil - 13/05/2010
No ano de 1983, uma foto estampada na primeira página do Jornal do Brasil renderia ao seu autor, o repórter-fotográfico Luiz Morier, o Prêmio Esso de Fotojornalismo. Nela, um grupo de negros atados pelo pescoço por uma corda é levado pela polícia, após uma das frequentes batidas em favelas do Rio de Janeiro. Assemelhando-se àquelas pinturas do século 19, em que aparecia o capataz com seu chicote ao lado de escravos amarrados, a fotografia de Luiz Morier era encimada por um sugestivo título: Todos negros. A pergunta do título remete a duas questões que permanecem dolorosamente atuais: por que a data referência da libertação dos negros continua sendo o 13 de maio, e qual é seu exato significado?
Talvez o questionamento mereça mais desdobramentos. Por que a crença de que vivemos numa democracia racial permanece tão enraizada no pensamento da maioria da população brasileira quando, ao nos determos no cotidiano social deste país, percebemos as profundas desigualdades que ainda envolvem distintas etnias? A constatação de que os negros e não brancos em geral são aqueles que têm empregos mais precários e com menor prestígio social não seria evidência suficiente para demolir de vez um imaginário construído ao longo de dois séculos?
Apesar do contraponto estabelecido pela criação do Dia da Consciência Negra, permanece o costume frequente de nos curvamos diante do ritual do 13 de maio. A mesma elite que não aceita políticas de cotas, que protela a sanção do Estatuto da Igualdade Racial, enaltece a libertação dos escravos como inicio de uma nova era de liberdade. Sequer se dá conta de que notórios abolicionistas como Nabuco, Patrocínio, Rebouças e Antônio Bento, apesar de fortes divergências sobre a questão social, afirmavam que a abolição só se cumpriria de fato com a reforma agrária e a entrada dos trabalhadores num sistema de oportunidades plenas e na concorrência.
Mesmo os setores mais progressistas, ao denunciar as condições socioeconômicas dos negros depois de 122 anos de abolição, justificam a situação atual como resquício do passado escravo. Isso explicaria a permanência de mecanismos não institucionais de imobilização que atingem o segmento negro da população, produzindo distâncias sociais enormes, jamais compensadas? Ou é cortina de fumaça para preservar a aura de bondade" da princesa branca? Estudos feitos sobre a época da chamada Abolição mostram que 70% da população dos escravos já estavam livres antes de 1888, ou por crise econômica de algumas frações da classe dominante ou por pressões dos próprios negros, através de lutas, fugas e rebeliões.
A Lei Áurea foi, na verdade, uma investida bem sucedida das elites pelo controle político de uma situação que lhes fugia das próprias mãos. Sua eficácia ideológica pode ser atestada até hoje com os festejos do 13 de maio. O que é um indicador preciso da recorrente capacidade de antecipação política da classe dominante continua sendo percebido como gesto magnânimo, exemplo da cordialidade vigente em nossa história política. A teoria dos resquícios (que de fato existem) tenta ocultar um fato relevante: os mais de 130 de modo de produção capitalista e seus mecanismos de exclusão da população negra não permitem jogar todo débito na conta do passado.
Como observa Fátima do Carmo Silva Santos, secretária da União Negra Ituana (Unei), a Lei Áurea foi, na verdade, um passo importante, mas, como veio desacompanhado de reformas estruturais, tornou-se uma demissão em massa do povo negro, já que eles não tinham emprego, educação ou qualquer condição de conseguir um trabalho que não fosse com os seus senhores em troca de um teto.
Embora o processo de desestruturação do mito da democracia racial tenha avançado muito nos últimos anos, no terreno da luta social e política perdura um grande atraso a ser superado. Cabe à República completar a Abolição com políticas públicas eficazes. Enquanto tivermos senadores responsabilizando os ex-escravos por sua própria escravidão e magnolis descendo o açoite em jornalistas que noticiaram o fato é fundamental que usemos a data para destacar a dimensão cultural, a construção social e ideológica de raça como elementos reprodutores de desigualdades sociais perpetuadas. É a única comemoração possível.
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