Autor(es): Agência O Globo/ JOÃO UBALDO RIBEIRO
O Globo - 02/05/2010
Deu no jornal que o presidente Evo Morales responsabilizou o frango pelo efeminamento de homens que, do contrário, seriam machos exemplares. Os bolivianos estariam cada vez mais soltando a franga, depois de comer frango. Não sei se o fenômeno já atinge proporções inquietantes por lá, mas não posso deixar de defender a galinha em mais este transe. Nós, defensores da galinha, ficamos irremediavelmente desfalcados de nosso grande representante Tom Jobim, que nos deixou pouco depois de fundarmos juntos a Liga Antidifamação da Galinha, concebida depois que ele pronunciou uma conferência inesquecível sobre o tema, à mesa de churrascaria em que nos reuníamos quase diariamente.
Com a falta que ele faz, a responsabilidade dos correligionários aumenta e cabe reconhecer que, de fato, os frangos de granja são tratados com hormônios, o que certamente causa maus efeitos em quem consome sua carne. Mas esquecem que primeiro causam maus efeitos nos próprios frangos, os quais, além de serem afrescalhados à força, sem direito a reclamar, não podem nem ter o gostinho de descontar em quem os come.
A galinha, para começar, tem em comum com outros animais úteis o fato de que seu nome constitui xingamento ou depreciação. É assim com vaca, peru, pato, burro e vários outros, ao contrário de tigre, leão, lobo ou o genérico “fera”. O peru, por exemplo, deve sofrer muito psiquicamente, porque enfrenta um grave problema de identidade, mesmo se excluídas as associações a esta altura já feitas pelos maliciosos. Em português, ele é conhecido como peru, porque se achava que se originava do Peru. Já no Peru, ele é chamado de “pavo”, reservando-se para o pavão a designação de “pavo real”. Ou seja, duvidase até mesmo de que ele seja real e certamente o afligem indagações sobre se sua vida não será apenas uma alucinação.
Na Alemanha, ele era antigamente chamado de “kalikutischer Hahn” ou seja “galinha de Calicute”, afronta dupla, porque ele nem é galinha nem é de Calicute, que, por seu turno, ninguém sabe direito onde fica. Hoje os alemães o chamam de “Puten”, o que não melhora muito as coisas. Na Inglaterra e nos Estados Unidos, ele é denominado “turkey”, porque, apesar de nativo da América do Norte, foi por ela rejeitado, pois se acreditava que vinha da Turquia. Na França, ele é “dindon”, de “coq d’Inde”, ou seja, “galo da Índia”. E por aí vai, entendendo-se perfeitamente por que o peru tem aquele ar desnorteado.
Por muito menos, qualquer um de nós também teria.
Quanto à galinha sempre foi das mais atingidas, até em comentários como o de que determinada senhora ou senhorinha não pode tomar banho quente, senão vira canja. Ou seja, um animal sem o qual a sobrevivência da Humanidade estaria ameaçada é tratado dessa forma desairosa. Até mesmo sua condição animal vem sendo negada e, pelo menos em alguns círculos importantes, ela já não é tratada dessa forma, como, aliás, anunciou o Tom, num dos debates da churrascaria.
— A galinha não é mais bicho — disse ele, brandindo uma revista.
— Os americanos redefiniram a galinha, está aqui num documento do Departamento de Agricultura deles. A galinha agora se define como um sistema destinado à conversão de proteína vegetal em proteína animal. Pronto, nem direito a cobertura da Sociedade Protetora dos Animais ela tem mais, acho que foi o golpe mais terrível que ela já recebeu. Cassaram tudo, não vão chamar mais o veterinário, para quando elas ficarem doentes, vão chamar o mecânico, conserte essa galinha aqui, deve ser o condensador, já imaginaram a humilhação? Acho que devemos pensar em instituir e apoiar a Resistência Galinácea, o mundo sem a galinha vai perder muito e, sem o canto do galo, é possível que não amanheça mais em lugar nenhum, isso é um perigo.
Pode ser uma boa a gente ir criando umas galinhas no quintal, para depois soltar na floresta da Tijuca, para elas viverem na clandestinidade, a salvo da CIA. Dentro de algumas gerações, teremos a galinha silvestre carioca, a galinha é nossa e ninguém tasca, ninguém chamará nossas galinhas de sistemas conversores de proteínas.
A novidade não devia surpreender, acrescentou ele, pois as galinhas já são verdadeiros zombies, nas granjas. Nas gaiolinhas em que elas são confinadas, juntinhas umas das outras e separadas apenas por uma tela, não há espaço para muito movimento, de maneira que elas ficam neuróticas e começam a bicarse, tentando comer-se vivas. Para evitar que façam isso, cortam-se as pontas de seus bicos com um aramezinho incandescente. Também se cortam unhas e esporões pelo mesmo motivo, de maneira que de fato elas cada vez se assemelham mais a máquinas.
E ainda houve o caso triste das galinhas do Arizona, se bem recordo qual o estado americano envolvido. Mais ou menos um terço do que as galinhas jovens ingerem se transforma em penas, o que configura grave prejuízo para os criadores.
Aí pesquisaram bastante e desenvolveram no Arizona uma galinha sem penas, somente com umazinha aqui ou acolá, para lembrar que se tratava de uma galinha. Mas, coitada, ela acabava morrendo de frio no inverno e, como os custos de aquecimento eram superiores aos da ração transformada em penas, desistiram dela, ainda mais que os consumidores ficaram com nojo daquela pele de galinha lisa e afirmaram que tinham a sensação de estarem comendo um lagarto.
— Diante de tudo isso — concluiu um dos participantes da mesa —, acho que devemos erguer um monumento à galinha desconhecida.
— Meu voto é a favor, bela ideia — disse Tom. — Vai fazer muita gente se sentir homenageada
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