Data de publicação:
05/10/2011Autor:
Bruno de PierroA responsabilidade geralmente atribuída aos pais, durante o período em que os filhos freqüentam a escola, é basicamente o de acompanhar o processo de aprendizagem. É, portanto, função dos pais verificar se a criança anda fazendo a lição de casa e a incentivar a estudar cada vez mais. Somado a isso, espera-se que os adultos freqüentem regularmente as reuniões de pais e mestres e mantenham certo contato com os professores. A exigência - apesar de ser feita a todas as famílias pelas mais diversas fontes (do Estado à mídia) - é atendida apenas por uma parcela. O modelo de família imposto pelo senso comum, representado pela “família do comercial de margarina”, na verdade não condiz com a realidade de muitos pais que sequer puderam freqüentar a escola e, assim, criaram expectativas distintas com relação à educação.
“O problema é quando a política incorpora esse tipo idealizado e tenta formular suas ações políticas políticas em torno desse único tipo”. O comentário é do economista da Unicamp Sérgio Stoco, autor de Família, educação e vulnerabilidade social: o caso da Região Metropolitana de Campinas, sua tese de doutorado. Nela, Stoco, que também é pesquisador do Núcleo de Estudos de Políticas Públicas (NEPP) e do Núcleo de Estudos da População (NEPO), ambos ligados a Unicamp, defende que um dos problemas das políticas educacionais é a homogeinização. Para ele, quando se estratifica uma população, a partir de uma variável socioeconômica, para identificar os processos de desigualdades educacionais, o que se obtém é uma medida que homogeniza e sintetiza características, tais como a escolaridade da mãe, o nível de alfabetização dos pais e as condições demográficas.
“A proposta que fiz é de entender os processos de decisão educacional da família. Meu objetivo era demonstrar que, nesse processo de decidir o que será feito pela educação das crianças de uma família, outros fatores também importam: o acesso que a criança tem à saúde, ao posto, a questão da burocracia na saúde, as formas precárias de trabalho que os pais tem, tudo isso interfere no processo de escolha”.
Acompanhe abaixo a entrevista que Stoco concedeu à reportagem do Brasilianas.org, na qual ainda explica o conceito da “mãe ideal”.
Brasilianas.org – Inicialmente, qual foi o objetivo de sua tese?
Sérgio Stoco - O objetivo fundamental foi discutir uma proposta de estratificação social, que permita se vincular com a educação, mas de uma forma mais ampla. Dentro dessa pesquisa, foi desenvolvido o conceito de vulnerabilidade social, que tenta ser um pouco mais amplo do que os conceitos que trabalhavam com estratificação de pobreza.
Quando se traça uma linha de pobreza, o que se faz? Estratifica-se determinada população, a partir de uma faixa de renda. Isso diz, de maneira geral, homogeneizando aquela população, quais são as condições dela dentro de uma linha, de um corte. Dentro do conceito de vulnerabilidade social, a análise é mais dinâmica e inter-setorial. [Leva-se em consideração] condições de saúde, de educação, habitação, condições demográficas do lugar, da rua, prestação de serviço, como coleta de lixo, água, esgoto. Há uma série de características que buscávamos aprender, para tentar mapear essas vulnerabilidades, a partir dessa perspectiva. E uma das dimensões era a educação.
Quando você fala de novos indicadores, o que eles seriam, e o que avaliariam?
A proposta que fiz é de entender os processos de decisão educacional da família. Meu objetivo era demonstrar que, nesse processo de decidir o que será feito pela educação das crianças de uma família, outros fatores também importam: o acesso que a criança tem à saúde, ao posto, a questão da burocracia na saúde, as formas precárias de trabalho que os pais tem, tudo isso interfere no processo de escolha.
Foram pesquisados 1680 domicílios da região metropolitana de Campinas, que representaram toda a região, pois da forma como montamos o plano amostral, esses domicílios foram representativos da região. Então, do absoluto até o menos vulnerável está na pesquisa.
A primeira conclusão é que não dá para pegar o resultado de uma pesquisa e transferi-lo automaticamente para a elaboração de uma política pública, sem ter um critério para se fazer isso. A segunda é que, para a gente observar o que se faz na educação, a gente tem que entender quais os objetivos que as famílias tem em torno da educação. As vezes, a instituição escolar também homogeniza as crianças que recebe. Pelas suas condições e estrutura, a escola não toma o cuidado de observar cada mundo que cada criança traz com ela. Todo mundo que teve uma experiência escolar, como eu e você, lembra-se como era a escola: você se matricula, entra e, no primeiro dia, você é colocado sentado em carteiras, uma atrás da outra, com uma professora na frente, passando algum conteúdo baseado em algum tipo de programa de formação. Isso é um processo homogeneizado de educação.
Pressupõe-se que a escola tem um conteúdo e alguns objetivos educacionais para alcançar, e que todos os alcançarão. A professora já sabe que alguns não alcançarão, mas não é dada a condição, a essa professora, para que ela tente reverter esse processo. Simplesmente se separa aqueles que vão passar [de ano] daqueles que não irão passar. Não é dada condição para que a professora trabalhe em com aquela criança com dificuldades, para que ela consiga também alcançar seus objetivos.
Você chegou a agrupar essas famílias em tipos?
Cheguei. Uma coisa interessante é o tipo ideal. Eu construí, a partir das variáveis, o tipo ideal de mãe. Pelas variáveis que eu tinha, era aquela que olhava as lições dos filhos todos os dias, conhecia todos os professores da escola e conversava com eles, e ia com freqüência à escola do filho. Então eu utilizei essas três variáveis e desagreguei as famílias, de acordo com as respostas que elas davam para essas três variáveis. O retorno foi que a mãe do tipo ideal, que respondia as três opções, é aquela que tem uma condição sócio-econômica melhor, que dentro do arranjo familiar cumpre o papel da dona de casa, pois em outras perguntas que fazemos de relação e gênero, é a pessoa responsável pela organização da casa, pela educação dos filhos, afazeres domésticos.
Assim como são aquelas que, quando trabalham, tem as menores jornadas e melhor remuneração. Ou seja, o tipo ideal de mãe depende de fatores materiais de condição. Esses fatores determinam o modo como os pais olham para a escola e criam expectativas para os filhos. E eu falo do tipo ideal, pois é assim que é propagado na televisão. A criança na mesa fazendo sua lição, a mãe que vem acompanhar, a típica família do comercial de margarina, todos bonitos, sentados juntos para tomar café da manhã, com o pai presente e todos sorrindo. Mas essa não é a realidade, e o problema é quando a política incorpora esse tipo idealizado e tenta fazer suas ações políticas em torno desse único tipo idealizado.
No caso da educação, você sustenta que se deve haver uma desagregação maior dos índices que medem a qualidade de ensino? Eles não são suficientes para configurar um cenário da educação no país?
Não falo exatamente de qualidade de ensino. Quando se faz o Enem, o Saeb, ou a Prova Brasil, que dizem que a qualidade de ensino é conhecimento do aluno, focando a dimensão da questão do conteúdo do aluno. Não é exatamente qualidade de ensino, e aí aparece um primeiro problema. Por exemplo, o Enem, cujo resultado foi divulgado recentemente. São feitas comparações, mas ele lança ranking, que só me permite dizer o quanto cada escola estava posicionada num determinado momento. Mas não me dá orientações sobre como melhorar o ensino dessas escolas.
Mas essa avaliação mais profunda, com base nos dados, não deve ser feita após a divulgação dos dados, por meio de interpretações de especialistas, gestores da educação e conselhos, que, aí sim, conseguem desenvolver políticas?
Essa deveria ser a lógica do sistema. Ou seja, você faz uma avaliação de sistema, exatamente para saber como ele está se posicionando, a partir de um determinado currículo, porque antes de se fazer avaliação de um sistema, você tem que ter parâmetro curricular. No caso do governo federal, há os parâmetros curriculares nacional. Então, ele aplica uma prova que está vinculada a esses parâmetros. Mas isso não ajuda, por exemplo, o professor na sala de aula. É preciso uma visão de sistema, para eles, de certa forma, entenderem quais pontos são mais trágicos e menos trágicos. O problema, e aí vou chegar ao ponto que você está colocando, é muitas vezes o problema da relação da pesquisa [acadêmica] e a política. O gestor pega a informação e tenta transformar, imediatamente, num programa de política pública.
Dê um exemplo, por favor.
É o caso do computador [em sala de aula]. A pesquisa diz que escolas com mais computadores tem uma posição melhor no resultado geral, mas isso não quer dizer que, colocando mais computador, isso vá melhorar.
Mas aí você tem o debate sobre a inclusão digital, que, obviamente, implica no desenvolvimento de técnicas para a alfabetização digital. Para você, esses esforços tem sido insuficientes?
Acho que existem alguns problemas. Um deles é a transposição daquilo que se pesquisa com aquilo que vira, de fato, política, ou seja, a orientação de política pública. Há um problema de conflito de interesses, originado pelo financiamento da pesquisa no Brasil. O pesquisador muitas vezes acaba virando gestor público, ministro, secretário de Educação, ou coordenador de pesquisas de algum órgão governamental, e isso é um problema.
Por que é um problema um perfil mais técnico ser um gestor?
O problema é ele não conseguir as duas coisas. Não haveria problema se ele conseguisse separar as duas coisas, isto é, se a pesquisa dele não dependesse de certo nível de investimento do Estado e se lançasse a um tipo de concorrência, que hoje é produtivista, dentro da academia, para ele colher qualquer recurso para continuar sobrevivendo na academia. Se a gente tivesse um sistema público de financiamento da pesquisa, com a garantia do desenvolvimento do trabalho independente dos resultados, isso daria uma segurança e uma confiança melhor para conduzir as pesquisas. É uma segurança para que você consiga desenvolver, independente de interesses já direcionados. Nessa discussão sobre a informática, é evidente que há uma série de grupos econômicos interessados no desenvolvimento rápido do computador na escola, pois isso significa compras enormes, da parte do governo.
O problema é, então, essa passagem imediata da pesquisa para a política, e a distorção que está havendo. Na minha pesquisa, cujo foco foi a família, eu tive que observar quais decisões as famílias tomam em relação à educação. Você concluir, a partir de um programa de educação governamental, que a criança fazer lição, ou que a família ir para a escola, ajuda, de fato, aquela criança a se desenvolver, eu questiono: será que para todas as classes sociais esse impacto é o mesmo? Será que uma família tem condição de ficar acompanhando lição de casa, se os pais são analfabetos?
Nesse sentido, há uma discussão maior, mais pedagógica do que política, que envolve os métodos de alfabetização. São escolas diferentes, pensadores, sugestões e conceitos que ora conversam entre si, ora são divergentes. Como esse denso caldo conceitual sobre o conhecimento, a pedagogia, é percebido pelos diferentes tipos de famílias?
Essa pergunta é interessante, pois se você pega as famílias mais pobres, com estrato de vulnerabilidade absoluto, é evidente que, para elas, esse fator pedagógico é como se não existisse. A interpretação de uma família mais carente é de que ela garanta, ao seu filho, algum tipo de benefício capital, no futuro, que talvez permita que ela ascenda em relação aos seus descendentes. Ou seja, transgredir os limites da classe dela. Mas esse olhar não é técnico. Quando a gente faz a pergunta dessa forma, a gente está embutindo, nessas pessoas, um olhar técnico que elas não tem.
Só de o filho estar na escola, já é bom. É essa a idéia?
Sim, pois, por exemplo, já o livra da violência. Uma família que tem crianças da classe média, que tem certa valorização da cultura letrada, que costuma ir ao teatro, cinema, tem uma postura crítica em relação às informações, tudo isso vai se incorporando no cotidiano da criança, como sendo algo aprendido também. E aí as escolhas são muito mais objetivas em torno de expectativas. Aí o vestibular faz muita diferença; é um treinamento para que a criança chegue a uma universidade desejada. O que não acontece com as crianças mais carentes, porque, inclusive, elas não se possibilitam a esse sonho., não é uma realidade delas.
Mas e com relação às diferentes propostas de ensino?
A primeira dificuldade é saber se o que está sendo implantado está sendo entendido. Vou dar um exemplo: a idéia dos ciclos [da progressão continuada]. Muito se discutiu e criticou, sobre se dão certo ou não, mas para que ele dê certo é preciso entender a proposta. Depois, é preciso dar condições para que essa proposta seja implantada de forma correta, para então depois saber se ela dá ou não certo. O problema é que não conhecemos direito a proposta – as pessoas falavam sem saber o que era. E isso é também um exemplo do atropelo da política em relação à pesquisa, queriam saber logo dos resultados. Quando falamos de análise social e de fenômenos sociais, não dá para esperar que a cada quatro anos você tenha resolvido um problema histórico. A educação brasileira tem uma dívida, que é histórica.
Você chega a sugerir algum método para ser utilizado nas escolas?
Não, pois não faço a discussão da escola, apesar de ser objeto de meu interesse. O que mostro é que, um processo que seria importante é saber o que as famílias tem de expectativas com relação á educação. Esse processo de participação Escola da Família, apesar de ser senso comum e envolver divulgação na imprensa, tenta estimular que a família vá para a escola, mas é um “ir para a escola” a partir de um olhar da própria escola. Então, você vai no conselho de pais, discutir as notas do filho, mas é uma abordagem que institucionaliza. Você leva alguém que não é institucionalizado e que não está acostumado com a cultura escolar [os pais de famílias mais pobres], para dentro da cultura escolar, e que ainda deve aceitar as regras daquela cultura. Não se importa, verdadeiramente, com o que esses pais pensam e sentem, quais suas expectativas e como vivem. E uma coisa que trabalho na tese é a dimensão material.
Como assim?
Não dá para fazer educação sem ter clareza de quais são as condições materiais que as pessoas tem. Porque é a partir dali que elas criam suas expectativas.
Você incluiu, aí, também a ação de movimentos organizados a partir da sociedade civil e de empresários, que tentam atuar na educação, aliados a governos?
É uma relação bastante difícil. Mas é um tipo de movimento que traz também um tipo de padrão moral de comportamento, baseado na família. Também pressupõe que há um modelo único, e que dá certo. E se não está dando certo, não é porque a estrutura geral da sociedade é que é ruim; não, é porque a pessoa é que não faz como deveria, individualizando as decisões. Ao fazer isso, ao se criar uma cultura que ao atrai a família à escola, esperando que a mãe tenha um determinado comportamento [de acompanhar o andamento do filho na escola], na realidade está se culpando a família. È a mesma coisa quando o governo diz que é a gestão da escola é que interfere nos resultados; na verdade, o governo transfere o papel dele de gestor público para aquela escola.
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