Autor(es): Claudio de Moura Castro
Veja - 28/05/2012
As leis da natureza podem ser cruéis. O preço do sucesso aqui pode ser o fracasso ali. Em meados dos anos 70, peritos da Fundação Ford ajudaram a reformular o vestibular do Quênia. Tornaram as provas mais inteligentes e criativas, buscando testar aquilo que realmente correspondia a uma boa educação. Obviamente, reforçaram perguntas de raciocínio e reduziram o número daquelas que apenas testavam a memória ou refletiam aspectos culturais. É isso que cabe fazer, pois estudamos para a prova. Se a prova é boa, estudamos coisas boas. Mas eles esperavam também que as provas ficassem mais justas, dando melhores oportunidades àqueles de origem mais modesta. Surpresa! Comparadas com as anteriores, as novas provas distanciavam ainda mais os ricos dos pobres. Pouco tempo depois, orientei a tese de mestrado de uma moça que havia estudado com Piaget. Ela estava indignada com a injustiça trazida pelos testes de inteligência aplicados pela Secretaria de Educação, pois exigiam conhecimentos factuais e normas culturais, não apenas raciocínio e capacidade mental. Em contraste, os protocolos inspirados nas teorias de Piaget eram livres desses ruídos. Tomou então uma amostra de alunos e aplicou os dois procedimentos. Outra surpresa! Comparados ao tradicional da secretaria, os protocolos de Piaget refletiam ainda mais a origem social dos alunos.
Nessa época, eu dirigia um projeto internacional de pesquisas (Programa Eciel) que incluía sete países latino-americanos. Tratávamos de aplicar testes de rendimento escolar (antepassados do Programa Internacional de Avaliação de Alunos — Pisa) e descobrir que fatores se associavam a bons resultados. Além das análises convencionais, decidimos separar as perguntas de memória daquelas que demandavam manifestações mais elaboradas de raciocínio. Tabulando, veio o mesmo resultado: os pobres obtinham escores relativamente próximos dos alcançados pelos ricos nas perguntas de memória, mas a distância aumentava com relação àquelas que mediam aplicação, raciocínio e análise. 0 Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) não privilegia a memória. Portanto, se substituir um vestibular muito tradicional, dará uma vantagem extra aos alunos que frequentaram as melhores escolas. No panorama brasileiro, são predominantemente alunos de origem social mais elevada A ideia de que seria uma prova que promoveria a igualdade social não passa de uma quimera. Eis o dilema. Se queremos uma educação melhor para o país, temos de sinalizar nos testes a direção do esforço esperado. Se a prova pedir raciocínio e análise, os alunos vão se esforçar para dominar essas competências. Se pedir para decorar, é isso que vão fazer. Portanto, o futuro da educação não pode abrir mão de provas que focalizem tais conhecimentos mais nobres —e não a memorização.
É verdade, para decorar fórmulas, reis da França, tabelas periódicas ou guerras púnicas, pobres e ricos estão em condições parecidas. Basta tempo para estudar e teimosia para guardar isso tudo na cabeça. Já as competências de ordem superior são muito mais difíceis de ser ensinadas. Portanto, sofrem muito mais as escolas piores, frequentadas pelos mais pobres. Em contraste, nas escolas dos alunos de família mais próspera esses assuntos são privilegiados. Por isso, eles terão maior chance de obter bons resultados. É a natureza malvada validando a chamada Lei de Mateus: "A quem tem, mais lhe será dado”. E agora? Se voltassem os vestibulares de decoreba. os pobres estariam mais bem servidos. Mas isso seria uma forma perversa de aproximá-los dos ricos, puxando para baixo o ensino de todos, já que as avaliações guiam o ensino. Não melhoraremos nossa lastimável educação sem provas que empurrem na direção certa. O que fazer: aproximar pobres e ricos ou promover conhecimentos de ordem superior? Não há como titubear. Nos testes, a prioridade tem de estar naqueles que empurrem para cima o ensino. Para atender aos imperativos de justiça social, o caminho é outro: melhorar a qualidade da educação pública nos níveis iniciais. Somente assim se pode reduzir a distância entre classes sociais, ou seja, puxando os pobres para cima. Aliás, para justificar essa política de qualidade, não seria necessário falar de vestibular.
Veja - 28/05/2012
As leis da natureza podem ser cruéis. O preço do sucesso aqui pode ser o fracasso ali. Em meados dos anos 70, peritos da Fundação Ford ajudaram a reformular o vestibular do Quênia. Tornaram as provas mais inteligentes e criativas, buscando testar aquilo que realmente correspondia a uma boa educação. Obviamente, reforçaram perguntas de raciocínio e reduziram o número daquelas que apenas testavam a memória ou refletiam aspectos culturais. É isso que cabe fazer, pois estudamos para a prova. Se a prova é boa, estudamos coisas boas. Mas eles esperavam também que as provas ficassem mais justas, dando melhores oportunidades àqueles de origem mais modesta. Surpresa! Comparadas com as anteriores, as novas provas distanciavam ainda mais os ricos dos pobres. Pouco tempo depois, orientei a tese de mestrado de uma moça que havia estudado com Piaget. Ela estava indignada com a injustiça trazida pelos testes de inteligência aplicados pela Secretaria de Educação, pois exigiam conhecimentos factuais e normas culturais, não apenas raciocínio e capacidade mental. Em contraste, os protocolos inspirados nas teorias de Piaget eram livres desses ruídos. Tomou então uma amostra de alunos e aplicou os dois procedimentos. Outra surpresa! Comparados ao tradicional da secretaria, os protocolos de Piaget refletiam ainda mais a origem social dos alunos.
Nessa época, eu dirigia um projeto internacional de pesquisas (Programa Eciel) que incluía sete países latino-americanos. Tratávamos de aplicar testes de rendimento escolar (antepassados do Programa Internacional de Avaliação de Alunos — Pisa) e descobrir que fatores se associavam a bons resultados. Além das análises convencionais, decidimos separar as perguntas de memória daquelas que demandavam manifestações mais elaboradas de raciocínio. Tabulando, veio o mesmo resultado: os pobres obtinham escores relativamente próximos dos alcançados pelos ricos nas perguntas de memória, mas a distância aumentava com relação àquelas que mediam aplicação, raciocínio e análise. 0 Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) não privilegia a memória. Portanto, se substituir um vestibular muito tradicional, dará uma vantagem extra aos alunos que frequentaram as melhores escolas. No panorama brasileiro, são predominantemente alunos de origem social mais elevada A ideia de que seria uma prova que promoveria a igualdade social não passa de uma quimera. Eis o dilema. Se queremos uma educação melhor para o país, temos de sinalizar nos testes a direção do esforço esperado. Se a prova pedir raciocínio e análise, os alunos vão se esforçar para dominar essas competências. Se pedir para decorar, é isso que vão fazer. Portanto, o futuro da educação não pode abrir mão de provas que focalizem tais conhecimentos mais nobres —e não a memorização.
É verdade, para decorar fórmulas, reis da França, tabelas periódicas ou guerras púnicas, pobres e ricos estão em condições parecidas. Basta tempo para estudar e teimosia para guardar isso tudo na cabeça. Já as competências de ordem superior são muito mais difíceis de ser ensinadas. Portanto, sofrem muito mais as escolas piores, frequentadas pelos mais pobres. Em contraste, nas escolas dos alunos de família mais próspera esses assuntos são privilegiados. Por isso, eles terão maior chance de obter bons resultados. É a natureza malvada validando a chamada Lei de Mateus: "A quem tem, mais lhe será dado”. E agora? Se voltassem os vestibulares de decoreba. os pobres estariam mais bem servidos. Mas isso seria uma forma perversa de aproximá-los dos ricos, puxando para baixo o ensino de todos, já que as avaliações guiam o ensino. Não melhoraremos nossa lastimável educação sem provas que empurrem na direção certa. O que fazer: aproximar pobres e ricos ou promover conhecimentos de ordem superior? Não há como titubear. Nos testes, a prioridade tem de estar naqueles que empurrem para cima o ensino. Para atender aos imperativos de justiça social, o caminho é outro: melhorar a qualidade da educação pública nos níveis iniciais. Somente assim se pode reduzir a distância entre classes sociais, ou seja, puxando os pobres para cima. Aliás, para justificar essa política de qualidade, não seria necessário falar de vestibular.
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