segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Raça questionada

Autor(es): Manoela Alcântara

Correio Braziliense - 17/01/2011

Entre todas propostas de ações afirmativas dentro do funcionalismo, as que mais geram polêmica são as destinadas a negros e índios. Entre próprios possíveis beneficiados tema não é unânime

As políticas de cotas já contemplam diversos segmentos da sociedade. Outros tantos aguardam votações de projetos de lei nas Casas do Legislativo brasileiro. Os deficientes ganharam espaço no artigo 37 da Constituição Federal, que determina a reserva de vagas a eles no serviço público. E a Lei nº 8.112 delimita que essa salvaguarda seja de 5% a 20% das oportunidades. No Mato Grosso do Sul, as pessoas de origem indígena têm, desde 2008, direito a 3% das ofertas em órgãos públicos. Os negros contam com o amparo do Estatuto da Igualdade Racial e, agora, terão no Instituto Rio Branco a primeira possibilidade de participar de um sistema de cotas em um certame nacional. Para os idosos, há um projeto de lei em tramitação no Congresso que tem como proposta a destinação de 5% das ofertas em seleções para aqueles com mais de 60 anos.

É nítido, no entanto, que algumas dessas determinações geram mais polêmica que outras. As discussões mais acirradas referem-se às cotas para negros e índios. “Nas universidades, demoramos quase três anos para conseguir o benefício. Hoje, temos 102 instituições com ações afirmativas para as duas etnias em todo o país”, lembra o professor do Departamento de Antropologia da Universidade de Brasília (UnB) José Jorge de Carvalho. Para ele, a desinformação é um dos principais problemas de quem é contra a medida. “A primeira coisa é se informar. As cotas existem para que, a médio prazo, tenhamos menos desigualdade racial entre as profissões no Brasil. Atualmente, a maioria das empresas tem apenas 1% de negros em seus quadros, e isso não tem mudado ao longo do tempo”, ressalta.

Embora as políticas de inclusão em concursos públicos sejam novas, entre muitas universidades elas já são uma realidade, que pode, inclusive, servir de termômetro para o mercado de trabalho. Seis anos após a instituição das políticas afirmativas raciais, cerca de 30% da “população preta e parda” do país, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), já está incluída em universidades. Em relação aos povos indígenas, somente na UnB há mais de 50 índios matriculados. Poran Potiguara, 21 anos, é um deles. Ele ingressou na instituição graças ao convênio firmado com a Fundação Nacional do Índio (Funai).

Em um vestibular cuja concorrência foi de mil pessoas por vaga, Poran foi aprovado para engenharia florestal. “A educação indígena é mais voltada para os costumes da aldeia. Não aprendemos as mesmas matérias das escolas tradicionais. Por isso, as cotas representam uma forma de dar direitos iguais para que possamos nos qualificar”, diz o aluno do terceiro semestre. No entanto, se a discussão das cotas é transferida para o serviço público, Poran se diz contrário. “Vou me formar para trabalhar na minha aldeia. Quero servi-los mais na área de botânica, fazer reflorestamento, mexer com a natureza. Mas para quem fez direito e outros cursos que não se encaixam no perfil indígena, acredito que seja importante”, pontua.

No STF

Já o índio e secretário executivo do Centro Indígena de Estudos e Pesquisas (Cinep), Camico Baniwa, acredita que a reserva de vagas no certame da Fundação Nacional do Índio (Funai), por exemplo, seria positiva para ambos os lados. “Hoje já temos cientistas sociais, antropólogos, enfermeiros e outros índios formados. Não existe uma discussão mais articulada acerca das cotas para nós. Isso tem funcionado apenas no Mato Grosso do Sul”, lembra. Além desse, há outros concursos nos quais a oferta de oportunidades exclusivas seriam interessantes para os índios. O de professor, para dar aulas nas aldeias, seria um deles. “A educação diferenciada, com bons salários, poderia começar a mudar a realidade da inclusão”, acredita Baniwa.

No caso das cotas para negros, a Lei nº 12.288 abre caminho para a criação de mecanismos que ampliem a presença dos afrodescendestes na administração pública. Mas a indeterminação quanto à legalidade da reserva de vagas dificulta a concretização desse tipo de iniciativa. Um dos fatores de impedimento para a universalização da política afirmativa é a existência de Ações Diretas de Inconstitucionalidade (Adins), que aguardam apreciação no Supremo Tribunal Federal (STF). “Enquanto isso não for analisado, não podemos dar um parecer. Se eles forem a favor (das cotas), saberemos qual a opinião da Justiça. Se forem contrários, estará batido o martelo em oposição à abertura de vagas específicas para negros”, ressalta o professor de direito internacional do curso O Diplomata, Joanisval Brito Gonçalves.

Vinte vagas por ano

O convênio entre a Funai e a UnB permite que, a cada semestre, os índios concorram a 10 vagas em cinco cursos: agronomia, enfermagem e obstetrícia, engenharia florestal, medicina e nutrição. O vestibular é especial e eles precisam ser indicados por lideranças das aldeias ou por entidades representativas dos povos indígenas. As inscrições para a seleção podem ser feitas no site do Cespe ou por meio de formulário disponibilizado em unidades credenciadas.

PALAVRA DE ESPECIALISTA I

Realidade escandalosa

José Jorge de Carvalho

Professor do Departamento de Antropologia da UnB

“As desigualdades raciais podem ser identificadas facilmente. Quem abriu os jornais, as revistas ou a internet nos últimos dias percebeu que, entre os 37 ministros escolhidos para a atual gestão, apenas dois são negros: o do Esporte, Orlando Silva, e a da Igualdade Racial, Luiza Helena de Bairros. Isso se reflete diretamente nas empresas públicas. Se formos pegar como exemplo o Judiciário, é possível ver a discrepância nas contratações. Dos 27 ministros do TST (Tribunal Superior do Trabalho), dois são negros. No STF (Supremo Tribunal Federal), ao longo dos seus 156 anos, só três ministros afrodescentes passaram por lá. No MPT (Ministério Público do Trabalho), entre 475 procuradores, apenas sete são negros. O Itamaraty tem mil funcionários, dos quais só 10 são negros. Isso é um escândalo. E não muda ao longo do tempo. A média de inserção na estrutura mais elevada do Estado não passa de 1%. Por isso, a necessidade das cotas no mercado de trabalho e no funcionalismo público.”

PALAVRA DE ESPECIALISTA II

Maioria desfavorecida

Joanisval Brito Gonçalves

Professor de direito internacional do curso O diplomata

“A cota para deficientes é válida. O legislador entendeu que deveria dar uma oportunidade a quem tem algum tipo de deficiência e isso já é lei. No caso das cotas raciais, o efeito pode ser inverso. Elas podem gerar uma discriminação em virtude da cor da pele dentro das próprias instituições. No concurso para o Instituto Rio Branco, corre-se um grande risco de ter diplomatas que o são não pela sua qualificação mas por uma eventual cor da pele. E o que importa em um concurso é a qualificação. O que importa é que o candidato faça a prova em condições de igualdade e seja aprovado, e não que seja empurrado para uma carreira sem qualificação. A mesma coisa ocorre nas universidades. Imagina se as pessoas quando forem procurar um médico se perguntarem de qual universidade ele veio, se entrou pelo sistema de cotas? A cor da pele vai gerar dúvidas quanto à qualificação do profissional. O nosso país começa a proteger demais alguns grupos e se esquece da sociedade como um todo. Cotas para índios, negros, mulheres, idosos. E aquele que não for de nenhum desses grupos? Acabará sendo discriminado.”

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