segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Itamaraty reabre a polêmica das cotas

Rio Branco. E negro!

Autor(es): Manoela Alcântara

Correio Braziliense - 17/01/2011

A reserva de 10% das vagas para negros na primera fase da seleção do Rio Branco trouxe de volta o debate sobre o benefício. O tema ainda é tabu nos órgãos públicos.

Nova política do Itamaraty de reserva de vagas para afrodescendentes reacende discussão sobre cotas em seleções públicas. Próximo concurso para diplomata destinará a essas pessoas 10% das oportunidades

A proporção de negros no Brasil já ultrapassou a de brancos e, hoje, representa 51,7% da população, segundo dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) coletados em 2009. São mais de 95 milhões de afrodescendentes, que transformaram o país na maior nação negra do mundo fora do continente africano. Apesar disso, o preconceito racial no país ainda é grande. Levantamentos do Ipea apontam que a taxa de desemprego entre essas pessoas é de 9,23%, enquanto entre os brancos fica na faixa dos 7,2%. Além disso, os negros são maioria nos setores com menor remuneração. Na agricultura, representam 61,3%, na construção civil, 60,1%, e nos serviços domésticos, 61,5%.

Mas o desejo de mudar essa realidade se intensificou na última década, com políticas de inclusão social. No serviço público, o intuito de levar os negros para os altos cargos começou no mês passado, quando o Instituto Rio Branco anunciou que disponibilizará 10% das vagas de sua próxima seleção para afrodescendesntes — o edital deve ser divulgado até o fim de janeiro. A cota será apenas para a primeira das quatro etapas do certame. Não haverá desconto do número de vagas universal: serão criadas novas oportunidades.

Naiara Lorraine da Silva Lopes, 25 anos, acredita que a chance dada aos negros fará diferença na sua aprovação. Formada em relações internacionais, ela já fez a prova do Instituto Rio Branco quatro vezes, mas só agora se sente confiante. “Acredito que agora vou passar. E, do jeito que será feito, vai ficar bom para todo mundo. A fase mais difícil é a primeira, pois a peneira é muito grande. Passando por ela, acho que conseguirei ingressar na carreira”, almeja.

Além das cotas, a candidata está mais animada porque conseguiu ingressar no programa Bolsa-Prêmio de Vocação para a Diplomacia, disponibilizado pelo Rio Branco e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Voltada para candidatos negros, a iniciativa oferece aos beneficiados uma bolsa de estudos de R$ 25 mil, que deve ser usada na preparação para o concurso. “Vim de Itumbiara, no interior de Goiás, e não tinha condições de pagar bons cursos. Estou tendo a orientação de profissionais competentes há apenas dois anos. Com eles, pego dicas e tenho aprendido cada dias mais”, conta Naiara.

Os dois incentivos são resultado da pretensão de levar a diversidade brasileira para dentro do Palácio Itamaraty, com negros, brancos, pardos e amarelos trabalhando juntos. E, no que depender da ministra da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), Luiza Helena de Bairros, a iniciativa servirá de exemplo para os organizadores de outras seleções. “Não tenho dúvidas de que iniciativas como essa abrem as portas no setor público. Será possível ver mudanças à medida que as políticas forem adotadas como expressões de avanço e tiverem o reconhecimento da sociedade”, afirmou em entrevista ao Correio.

A chefe da pasta enfatiza ainda que, segundo as Nações Unidas, 2011 será o ano internacional dos afrodescendentes e que, por isso, o Brasil precisa intensificar as ações de inclusão. Para Luiza Helena, é importante, por exemplo, que todos os ministérios adotem iniciativas cujos efeitos sejam marcantes para a população negra. “Já foi dado um primeiro passo. Agora, vamos esperar para ver a possibilidade em outros locais, ainda não temos nada definido”, complementa.

Argumentos divididos

Embora a atitude seja louvada pelos representantes do movimento negro, a criação das cotas em concursos públicos gera polêmica entre acadêmicos, juristas e concurseiros em geral. Para o professor de direito internacional do curso preparatório O Diplomata, Joanisval Brito Gonçalves, a divisão de vagas por cor da pele beira o absurdo. “O Brasil não é um país com essa divisão racial. Esse é um modelo importado dos Estados Unidos. Cotas para negros, índios, japoneses ou outros só discriminam aqueles que não pertencem a esses grupos de fato”, observa. Para ele, a reserva de vagas tenta mascarar um problema de formação acadêmica.

A maioria dos especialistas entrevistados pelo Correio é a favor de um incentivo para uma melhor qualificação profissional que tenha início desde o ensino fundamental, sem distinção de raça. Diferenciar os profissionais por origem étnica é algo que ainda assusta estudiosos da área do direito, por exemplo. O medo é que trabalhadores sem o preparo necessário assumam vagas e prestem um serviço ruim. Outra forte discussão é sobre a definição de quem é negro ou não no país. Há pessoas que alegam ter o direito de fazer parte da seleção por cotas dado que têm ascendência de pai, mãe ou avô negro. Mas as dúvidas surgem exatamente nesse ponto, dado que a árvore genealógica da maioria dos brasileiros apresenta parentesco com afrodescentes.

O professor de direito constitucional do Gran Cursos João Trindade é a favor das cotas para as vagas de diplomata, mas não acredita que a evolução dessa medida para outros certames possa dar certo. “É natural que se deseje uma diversidade cultural entre os representantes do Brasil lá fora. Não podemos ter um corpo de embaixadores brasileiros só de loiros de olhos azuis. É interessante que haja negros, nordestinos. Para outros concursos, a decisão é mais complexa. A princípio, não acho viável”, defende.

Autodeclarada negra por ideologia e por cor da pele, Naiara diz que não teme ser discriminada se aprovada em uma seleção pública pelo sistema de cotas. Ela fala espanhol, francês, japonês, inglês e português, e se prepara com afinco para as provas de redação em línguas, além das outras matérias. “Dediquei a vida toda para o concurso, sempre quis desde pequena. Não me vejo fazendo outra coisa. Até pensei em ir para o ramo do comércio, mas não seria feliz”, considera.

Segunda fase

A reserva de vagas da seleção para o Rio Branco valerá na passagem da primeira para a segunda fase. Haverá um número de vagas adicional destinado a candidatos afrodescendentes, que será de 10% do total de aprovados para essa etapa. Se prevalecerem as regras do último edital, além de 300 aprovados, mais 30 pessoas autodeclaradas negras poderão ingressar pelo sistema de cotas.

POVO FALA

Você é a favor das cotas para negros em concursos?

“Acredito nas ações afirmativas para a inclusão de negros. A Bolsa-Prêmio de Vocação do Rio Branco para ajudar nos estudos é uma política acertada que ajuda as pessoas a ingressarem no concurso por mérito próprio. Acho que a disponibilidade dos 10% também vai ajudar a cumprir o objetivo de conseguir a diversidade no corpo de diplomatas. Eu poderia participar do sistema de cotas, mas não vou porque prefiro que as pessoas que tenham menos condições que eu participem.”

Fabrício Lima,

24 anos, formado em relações internacionais

“Sim. Sou a favor das cotas, mas não especificamente as definidas por raça. Seria melhor que elas fossem definidas pela questão econômica, por fatores de oportunidades. Quem é mais favorecido pode pagar cursinho, tem melhores oportunidades de estudo. Acho que a cota por fatores econômicos é muito mais inteligente e inclui mais.”

Vivian Krause,

25 anos, formada em relações internacionais

“Em curto prazo, sim. Se não for uma política eterna, acredito que o sistema de cotas vale a pena. Elas (as cotas) deveriam funcionar até o momento em que a inclusão já estivesse funcionando com fluidez no mercado. Na verdade, o investimento deveria ser feito na educação básica, nos direitos iguais para todos. Mas, como isso tem sido difícil, como política emergencial, acho que funciona, sim.”

Flávia Magalhães Freire,

22 anos , formada em relações internacionais

“Não. Nesse caso do Itamaraty é uma cota para a primeira fase. Só vai servir para (que os beneficiados) passem pela cota, e pessoas que estiverem mais bem preparadas sejam reprovadas. Na segunda fase, a chance de reprovação (dos negros) é grande. Seria mais legal um tipo de cota para quem estudou em escola pública, segregaria menos. Além disso, quem é negro no Brasil? Eu sou filha de negro, meu pai e meu avô são negros. Eu posso ser considerada negra? A miscigenação é grande, fica difícil.”

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