quinta-feira, 18 de novembro de 2010

O Enem levou bomba de novo


Autor(es): Ana Aranhe e Marcelo Rocha
Época - 16/11/2010
 

Erros primários tumultuam a aplicação do exame criado para ser o vestibular nacional. Os problemas mostram que seu modelo de gestão precisa ser revisto

Com Camila Guimarães, Murilo Ramos e Nelito Fernandes

Pela segunda vez nos últimos dois anos, os estudantes que se preparam para cursar o ensino superior sentem as consequências da falência da educação pública no Brasil. A série de erros e falhas que ocorreram neste ano na aplicação do Enem, o Exame Nacional do Ensino Médio, é chocante para o público familiarizado com o alto padrão de exigência para entrar nas universidades públicas mais concorridas do país. Erros diversos ocorreram em diferentes etapas do processo: dentro do Ministério da Educação, na gráfica que imprimiu as provas, na orientação aos alunos e na segurança do sigilo do conteúdo. Como os erros se repetiram, essa é uma evidência de que não se trata de falha localizada, mas de um problema de gestão do exame pelo Ministério da Educação.

O Enem foi reformulado no ano passado para virar um vestibular nacional unificado. Ao centralizar a seleção, o ministério criou um instrumento capaz de dirigir o currículo das escolas. Sem o Enem, o currículo do ensino médio fica sobrecarregado porque tenta dar conta do conteúdo de diversos vestibulares, alguns ligados ao antigo método da decoreba. O princípio da prova foi elogiado por educadores, gestores e economistas, mas o Enem, ao ser colocado em prática, está sendo reprovado. Em vez de induzir melhorias no ensino médio, o Enem prejudicou a qualidade da seleção para o ensino superior ao incorporar as carências, os vícios e os erros de gestão que há décadas prejudicam a qualidade da educação pública.

Para aplicar o Enem, o governo montou, pelo segundo ano, uma operação de guerra. A prova vale para ingresso em 84 instituições de ensino superior, sendo que 36 delas adotam o exame como única forma de seleção. São mais de 80 mil vagas em disputa. Para garantir a segurança, o exame foi aplicado, simultaneamente, em 1.698 municípios com mais de 200 mil fiscais. A Polícia Federal, os Correios e o Exército participaram da distribuição das provas. Apesar dessa imensa logística, ocorreram falhas primárias em três etapas do processo: dentro do ministério, a folha de respostas foi elaborada com erros; da gráfica, saiu um lote de 21 mil provas com erros de impressão; e, finalmente, nas escolas, os fiscais não sabiam tirar as dúvidas dos alunos em relação aos erros das provas.

Como resultado dessa sequência de falhas, um número incalculável de alunos foi prejudicado em seu desempenho na prova. Criou-se também um imbróglio jurídico em torno da validade do exame. Uma decisão da Justiça Federal do Ceará suspendeu, por cinco dias, o Enem. Na sexta-feira, o governo federal conseguiu derrubar a decisão, mas a disputa ainda pode se estender na Justiça. Os erros e a incerteza sobre a validade da prova revoltaram os estudantes em todo o Brasil, que saíram às ruas para protestar.

Diante desse quadro, a reação do governo foi lenta e tíbia. O ministro da Educação, Fernando Haddad, demorou 48 horas, depois que os primeiros problemas apareceram, para se pronunciar publicamente. Ele tentou minimizar os erros cometidos por seus subordinados e, uma semana depois do episódio, ainda não havia se dirigido aos estudantes nem assumido responsabilidades (leia a entrevista com o ministro). Haddad era um dos nomes cotados para continuar na pasta da Educação no governo da presidente eleita, Dilma Rousseff. Em 2007, ele conquistou educadores, empresários e economistas – além do presidente Lula – com o lançamento de um plano de metas para a educação. Com a repetição do fracasso do Enem, diminuem suas chances de permanecer no governo.

Apesar do fiasco consecutivo, mudanças na gestão do Enem podem ainda salvar a reputação e a credibilidade do exame. “É hora de ter calma para separar as coisas”, diz Wanda Engel, superintendente do Instituto Unibanco, que trabalha com a gestão de escolas de ensino médio. “Uma avaliação nacional é a única maneira de garantir oportunidades iguais para o aluno do Piauí e de São Paulo.” A principal providência, segundo os especialistas, deve ser a descentralização da prova. A concentração de toda a operação do Enem no Ministério da Educação pode ter dificultado a implantação de controles de eficiência. “O ministério realiza desde a elaboração da prova até a distribuição. Talvez o erro tenha sido não dimensionar o tamanho e a complexidade da operação”, afirma Mozart Ramos, conselheiro do Todos Pela Educação, entidade que defende a qualidade no ensino público.

Para diminuir os riscos de erro, Ramos afirma que as universidades – e não o ministério – devem ser as responsáveis pela aplicação. O ministério se limitaria a produzir o conteúdo e coordenar o calendário para que a seleção continue unificada. s Mas a aplicação da prova ficaria a cargo da estrutura de vestibular que as universidades já têm. Para Maria Helena Guimarães de Castro, ex-secretária da Educação do Estado São Paulo, a melhoria do Enem passa pela descentralização por regiões. “Os alunos de cada região poderiam receber uma prova diferente, em datas diferentes, o que aumentaria a possibilidade de controle.”

Em qualquer uma das duas alternativas, o ministério precisaria criar um banco de perguntas para o Enem 100 vezes maior que o atual. O método usado hoje é a Teoria da Resposta ao Item (TRI), em que todas as perguntas são pré-testadas com grupos de alunos. Assim, define-se qual é o grau de dificuldade de cada questão. Esse método permite também que o ministério elabore provas diferentes dentro do mesmo exame. Neste ano, por exemplo, o ministério elaborou uma prova diferente para estudantes presidiários. Montar um banco maior de perguntas, porém, é caro e leva tempo. Na avaliação do ministro Haddad, seria impossível fazer isso já para 2011.

Um modelo descentralizado seria semelhante ao exame que é aplicado pelos Estados Unidos, o SAT, no acesso às universidades (leia o quadro abaixo). O exame americano acontece sete vezes por ano, em lugares diferentes. Quem organiza e elabora as provas é o College Board, organização integrada por mais de 5 mil universidades e escolas e entidades públicas e privadas. A logística é administrada por uma fundação independente que aplica 200 milhões de testes anualmente dentro e fora do país. Os locais das provas são credenciados e, em mais de 90% deles, o exame é feito por computador.

O SAT existe há quase 100 anos nos EUA. O Brasil ainda dá os primeiros passos na construção de seu modelo. Desde que o novo Enem foi criado, em 2009, o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), órgão responsável pelo exame dentro do ministério, vive uma crise de identidade. O órgão, originalmente, fazia levantamentos, análise de dados e conteúdo das avaliações. Os funcionários não têm experiência em logística e segurança de provas. Segundo técnicos ouvidos por ÉPOCA, desde a falha do ano passado, o ministro Haddad tenta reorientar o Inep para o trabalho na área de logística, antes assumido pelos prestadores de serviço como o Cespe, instituição ligada à Universidade de Brasília (UnB), e a Fundação Cesgranrio. Essa mudança de prioridades gerou desconforto dentro do Inep, onde a reclamação dos técnicos é que está se tentando “trocar cérebros por braços”.

No auge desse processo, Haddad nomeou Joaquim Neto, ex-presidente do Cespe, para a presidência do Inep. A nomeação foi recebida com desconfiança pela equipe. Neto, que antes estava na condição de fornecedor do Inep, passou a ser fiscalizador do órgão que presidia. O conflito de interesses pode ter afrouxado as rédeas na fiscalização do contrato do Enem neste ano. O Cespe, junto com a Cesgranrio, foi um dos institutos contratados sem licitação para aplicar a prova do Enem. Era parte do consórcio responsável pela coordenação dos fiscais na orientação dos alunos – uma das etapas do processo em que houve mais problemas, segundo queixas dos estudantes.

Ao ser nomeado para o Inep, Neto levou consigo o histórico de problemas do Cespe. O centro foi alvo de investigações sobre fraudes em concursos nos últimos anos. A última delas ocorreu na prova da Ordem dos Advogados do Brasil, em março. Quando assumiu o Inep, ele enfrentou a pior greve da história do instituto. Foram 50 dias de paralisação. Após a greve, Neto promoveu demissões no órgão, o que só aumentou a insatisfação. Segundo um funcionário, a falta de sintonia entre Neto e a equipe de técnicos pode ter contribuído para o descontrole do Enem, abrindo brechas para erros primários, como a troca dos cabeçalhos na folha de respostas. O erro passou por quatro técnicos, que não notaram o problema.

“Absurdo”, “ridículo”, “amador”, “inadmissível” foram alguns dos termos usados por técnicos do Inep para classificar o deslize dos colegas. A inversão não foi percebida pelo Inep, mas foi identificada pelos alunos no primeiro minuto após a abertura das provas. Alertado, o ministério orientou os alunos a ignorar o cabeçalho e a preencher o gabarito de acordo com a numeração das perguntas. Aí, começaram as falhas das empresas contratadas para aplicar a prova, o Cespe e a Cesgranrio. A coordenação dos mais de 200 mil fiscais não funcionou. Alguns entenderam a ordem, enquanto outros orientaram os alunos a fazer o inverso: a preencher a prova de acordo com a ordem do cabeçalho.

Como tentativa de remendo, o ministério anunciou que vai colocar uma página na internet em que os alunos que preencheram o gabarito ao contrário poderão se identificar. Esses alunos poderão ter suas provas corrigidas de acordo com a ordem do cabeçalho. Essa solução, porém, não dá conta dos casos em que os fiscais deram orientações conflitantes, como no Colégio Estadual Engenheiro Moura Brasil do Amaral, em Paraty, Rio de Janeiro.

Na sala de Murilo Teixeira, de 24 anos, o fiscal orientou os alunos corretamente. Mas, na mesma escola, o fiscal da sala de sua namorada deu a ordem inversa: preencher o gabarito de acordo com o cabeçalho, invertendo todos os números das questões. Meia hora depois, o fiscal se deu conta do erro e corrigiu a informação. Mas um grupo de alunos já havia começado a preencher o gabarito. Segundo a aluna, o grupo protestou, mas o fiscal não reagiu. “Só repetiu que, a partir daquele momento, era para preencher de outro jeito.”

Ainda não é possível saber a dimensão desse problema. Segundo a União Nacional dos Estudantes (UNE), uma grande quantidade de alunos reclama de problemas diversos na orientação dos fiscais. A UNE quer que todos os alunos que se sentiram prejudicados possam refazer a prova. Por enquanto, Haddad admite apenas reaplicar a prova para os alunos que foram prejudicados por outro erro, cometido pela gráfica. A RR Donneley distribuiu 21 mil cadernos de perguntas com erros. A gráfica assumiu a falha e se comprometeu a financiar a reaplicação para os alunos prejudicados.

O destino do Enem pode ser decidido agora pela Justiça, que desconhece, porém, o arcabouço técnico do exame. O procurador da República Oscar Costa Filho, que propôs a suspensão do exame, admite que pouco sabe sobre a TRI – a metodologia da montagem da prova. “Parece que o ministério quer resolver todos os seus problemas com uma palavra mágica: TRI”, afirma. “O Enem é um trem descarrilhado e sem maquinista. Nós conseguimos colocar um freio nele. Mas, se o ministro insistir em tirar o freio e reaplicar o exame só para um grupo, vai causar um acidente maior porque vamos pedir anulação de tudo.” Se isso ocorrer, será o pior desfecho para o Enem 2010.

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