Autor(es): agência o globo:Janaina Lage
O Globo - 01/04/2012
Para biógrafo de Che Guevara, governo cubano precisa evitar que a ilha se torne uma sociedade criminosa organizada
Autor de uma biografia considerada por muitos como o relato definitivo sobre a vida de Ernesto Che Guevara, Jon Lee Anderson avalia que Cuba está próxima do fim de uma era. Para contar a história do guerrilheiro, o jornalista passou três anos na ilha, onde teve acesso a documentos inéditos, e passou por Bolívia e Argentina. Nos últimos anos, escreveu ao menos três ensaios sobre a situação política em Cuba.
Famoso por mergulhar profundamente nos cenários que retrata em livros e em reportagens para a revista "New Yorker", o jornalista americano, de 55 anos, se notabilizou com a cobertura de conflitos em países como Iraque, Afeganistão, Angola e Líbano, entre outros. E também é reconhecido por perfis inspirados de líderes políticos como Hugo Chávez, Fidel Castro e Augusto Pinochet.
Anderson tem uma forte relação com a América Latina, onde iniciou sua carreira, em 1979, no "Lima Times", no Peru. Na década de 80, cobriu a região para a revista "Time". Em 2009, publicou uma longa reportagem sobre a ação dos traficantes no Rio de Janeiro, que incluiu visitas ao Morro do Dendê e entrevista com o traficante Fernando Gomes de Freitas, o Fernandinho Guarabu.
Nascido na Califórnia, o jornalista, filho de diplomata, foi criado em países como Coreia do Sul, Colômbia, Taiwan, Indonésia, Libéria e Reino Unido.
Com o lançamento de uma edição atualizada da biografia pela editora Objetiva, Anderson reflete sobre o alcance do mito de Che na política latino-americana e sobre o futuro da região num cenário de ascensão de governos de esquerda. Em entrevista ao GLOBO, concedida por e-mail direto da região das Montanhas Nuba, no Sudão do Sul, Anderson discute o papel da Igreja na parceria com o Estado após a visita de Bento XVI ao país, a situação econômica da ilha e os efeitos do fim do chavismo para Venezuela e Cuba, além de defender uma posição mais ativa do governo brasileiro em relação ao regime dos irmãos Castro a fim de conquistar mais avanços na área de direitos humanos.
JON LEE ANDERSON: Em Cuba, a juventude está dividida quanto a Che Guevara. Para alguns, é o maçante símbolo de uma "revolução do poderia", apregoada por velhos homens que ainda dominam o país usando a retórica do socialismo. Para outros, apesar de tudo, ele permanece uma figura potente, admirável, como um George Washington revolucionário ou a figura de Gandhi - um pai fundador do sistema único de nacionalidade determinista de Cuba, alguém para imitar em sentido abstrato, em um senso de inalcançável. Algo como Cristo.
ANDERSON: A influência pode ser vista em uma geração de líderes - mais notavelmente Hugo Chávez e Evo Morales, mas também Daniel Ortega, Fernando Lugo, Rafael Correa e até mesmo Kirchner - para quem o perigo de uma invasão militar americana diminuiu, apesar de qualquer política de confrontação que tenham adotado. Da mesma forma que Fidel sempre foi visto como uma fonte de orgulho nacionalista para a América Latina por sua atitude de desafio em relação aos EUA - mesmo entre políticos conservadores - Che é um santo padroeiro conveniente. Ele também pode ser usado astutamente como chamariz por políticos cujas credenciais revolucionárias são praticamente nulas, como forma de apelo à juventude irrequieta.
Um governo socialista pode ter uma transição suave para o capitalismo?
ANDERSON: Transição suave? Duvido. A questão da propriedade por si só em Cuba é altamente complicada; existem muitos cubanos vivendo em casas compartilhadas com outros e que não foram compradas, mas que são legados dos confiscos de bens dos que fugiram. Desde o colapso da União Soviética, há um florescente mercado negro de imóveis, que se estende a estrangeiros "comprando" casas e usando inquilinos cubanos como laranjas. Dependendo das salvaguardas que a Revolução adotar, existe a possibilidade de redes de criminosos surgirem nesse mercado. De outro lado, as vicissitudes do socialismo cubano nas últimas décadas prepararam seus cidadãos para um mundo empreendedor de cada um por si. Com o controle, isso deve permitir a emergência de uma nova classe média. Mas é possível perguntar como os jovens e os velhos se sairão.
ANDERSON: O açúcar está quase morto em Cuba. Há um pouco de petróleo, pesca e turismo, mas a agricultura está em péssimas condições e não há exportações suficientes para se falar além de rum, migrantes cubanos e tabaco. Isso é nada. No fim, há o turismo e uma economia de serviços que, infelizmente para os cubanos, inclui uma próspera indústria do sexo e um traço nacional de trapaça como modo de sobreviver. Muito precisa ser feito para evitar que Cuba se transforme num tipo de sociedade criminosa organizada que temos visto em tantos outros Estados socialistas. Isso vai depender em grande parte de atitudes e políticas dos próprios governantes cubanos.
ANDERSON: Sim, é uma possibilidade. Quando o Papa João Paulo II visitou Cuba, em 1998, foi um momento significativo no qual os Castro pareceram estar dispostos a permitir que a Igreja atuasse como uma espécie de garantidora de alguma abertura política. Essa janela foi fechada em 2003, quando Bush invadiu o Iraque, e os Castro se sentiram ameaçados por uma mudança de regime inspirada pelos EUA. A insegurança aumentou com a doença de Fidel e os primeiros anos de Raúl no poder. O fato de Chávez ter surgido na última década como um benfeitor tornou a repressão viável. É possível que estejamos diante de um recomeço desse processo, que começou sob João Paulo II e foi depois congelado. Os líderes da Igreja cubana claramente se adaptaram à Revolução e adotaram uma visão de longo prazo. Isso é chave para que ela seja uma intermediária confiável com adversários políticos.
É possível revisar o modelo econômico da ilha sem mudanças na política?
ANDERSON: Isso é um híbrido do modelo de transição em China, Vietnã e outros Estados socialistas que optaram pela abertura econômica, mas sem concessões políticas. No final, vai depender da percepção de insegurança, e os Castro podem permitir que a Igreja atue como um garantidor para algumas limitadas liberdades políticas, mas nada que desafie a suprema autoridade do Partido Comunista. Eles são altamente conservadores. O tempo vai dizer se podem reprimir sua natureza burocrática e tolerar novas liberdades econômicas que comecem a realmente alterar o cenário social em Cuba.
ANDERSON: O câncer de Chávez e sua possível morte no futuro próximo representariam um mar de mudanças no cenário político da América Latina. Sem falar na própria Venezuela. Se o sucessor não continuar com a generosidade financeira regional, os países que a recebem, como Cuba, serão fortemente atingidos - isso pode ter um efeito similar para a ilha ao corte de subsídios da União Soviética na década de 90. E também vai determinar o nível de influência americana na região. Haverá uma oportunidade de ressurgimento do poder americano com uma nova configuração, mais respeitosa talvez, mas muito depende de quão sabiamente o presidente americano e seus emissários vão proceder. No passado, sabedoria não foi o principal traço de Washington na América Latina. Outra coisa: o poder americano tem diminuído como resultado dos erros cometidos nos anos Bush, da ascensão da China e da economia declinante dos EUA. O Brasil agora tem lugar na mesa de negociação no hemisfério, um lugar merecido e bem-vindo. A política externa americana em relação à região terá que levar isso em conta.
ANDERSON: A eventual morte de Fidel pode ser uma oportunidade para acabar com esse embargo anacrônico. Se os EUA jogarem duro de verdade, como têm feito até agora, então pode ser que esperem concessões econômicas reais, e algumas políticas também, mas não antes da reeleição de Obama como presidente. Ele precisa dos votos de cubano-americanos da Flórida.
ANDERSON: Penso que o Brasil tem um papel muito importante no hemisfério e que a líder brasileira pode, e deve, usar sua influência para calmamente obter algumas concessões com os cubanos. Será mais fácil para eles aquiescer aos pedidos do Brasil do que aos dos americanos. Ela pode escolher trabalhar de forma discreta agora, mas, se necessário, falar abertamente se a situação exigir. A libertação de prisioneiros políticos poderia ser a compensação para qualquer investimento brasileiro ou crédito financeiro. Não deve ser tão difícil e deveria ser feito.
O Globo - 01/04/2012
Para biógrafo de Che Guevara, governo cubano precisa evitar que a ilha se torne uma sociedade criminosa organizada
Autor de uma biografia considerada por muitos como o relato definitivo sobre a vida de Ernesto Che Guevara, Jon Lee Anderson avalia que Cuba está próxima do fim de uma era. Para contar a história do guerrilheiro, o jornalista passou três anos na ilha, onde teve acesso a documentos inéditos, e passou por Bolívia e Argentina. Nos últimos anos, escreveu ao menos três ensaios sobre a situação política em Cuba.
Famoso por mergulhar profundamente nos cenários que retrata em livros e em reportagens para a revista "New Yorker", o jornalista americano, de 55 anos, se notabilizou com a cobertura de conflitos em países como Iraque, Afeganistão, Angola e Líbano, entre outros. E também é reconhecido por perfis inspirados de líderes políticos como Hugo Chávez, Fidel Castro e Augusto Pinochet.
Anderson tem uma forte relação com a América Latina, onde iniciou sua carreira, em 1979, no "Lima Times", no Peru. Na década de 80, cobriu a região para a revista "Time". Em 2009, publicou uma longa reportagem sobre a ação dos traficantes no Rio de Janeiro, que incluiu visitas ao Morro do Dendê e entrevista com o traficante Fernando Gomes de Freitas, o Fernandinho Guarabu.
Nascido na Califórnia, o jornalista, filho de diplomata, foi criado em países como Coreia do Sul, Colômbia, Taiwan, Indonésia, Libéria e Reino Unido.
Com o lançamento de uma edição atualizada da biografia pela editora Objetiva, Anderson reflete sobre o alcance do mito de Che na política latino-americana e sobre o futuro da região num cenário de ascensão de governos de esquerda. Em entrevista ao GLOBO, concedida por e-mail direto da região das Montanhas Nuba, no Sudão do Sul, Anderson discute o papel da Igreja na parceria com o Estado após a visita de Bento XVI ao país, a situação econômica da ilha e os efeitos do fim do chavismo para Venezuela e Cuba, além de defender uma posição mais ativa do governo brasileiro em relação ao regime dos irmãos Castro a fim de conquistar mais avanços na área de direitos humanos.
JON LEE ANDERSON: Em Cuba, a juventude está dividida quanto a Che Guevara. Para alguns, é o maçante símbolo de uma "revolução do poderia", apregoada por velhos homens que ainda dominam o país usando a retórica do socialismo. Para outros, apesar de tudo, ele permanece uma figura potente, admirável, como um George Washington revolucionário ou a figura de Gandhi - um pai fundador do sistema único de nacionalidade determinista de Cuba, alguém para imitar em sentido abstrato, em um senso de inalcançável. Algo como Cristo.
ANDERSON: A influência pode ser vista em uma geração de líderes - mais notavelmente Hugo Chávez e Evo Morales, mas também Daniel Ortega, Fernando Lugo, Rafael Correa e até mesmo Kirchner - para quem o perigo de uma invasão militar americana diminuiu, apesar de qualquer política de confrontação que tenham adotado. Da mesma forma que Fidel sempre foi visto como uma fonte de orgulho nacionalista para a América Latina por sua atitude de desafio em relação aos EUA - mesmo entre políticos conservadores - Che é um santo padroeiro conveniente. Ele também pode ser usado astutamente como chamariz por políticos cujas credenciais revolucionárias são praticamente nulas, como forma de apelo à juventude irrequieta.
Um governo socialista pode ter uma transição suave para o capitalismo?
ANDERSON: Transição suave? Duvido. A questão da propriedade por si só em Cuba é altamente complicada; existem muitos cubanos vivendo em casas compartilhadas com outros e que não foram compradas, mas que são legados dos confiscos de bens dos que fugiram. Desde o colapso da União Soviética, há um florescente mercado negro de imóveis, que se estende a estrangeiros "comprando" casas e usando inquilinos cubanos como laranjas. Dependendo das salvaguardas que a Revolução adotar, existe a possibilidade de redes de criminosos surgirem nesse mercado. De outro lado, as vicissitudes do socialismo cubano nas últimas décadas prepararam seus cidadãos para um mundo empreendedor de cada um por si. Com o controle, isso deve permitir a emergência de uma nova classe média. Mas é possível perguntar como os jovens e os velhos se sairão.
ANDERSON: O açúcar está quase morto em Cuba. Há um pouco de petróleo, pesca e turismo, mas a agricultura está em péssimas condições e não há exportações suficientes para se falar além de rum, migrantes cubanos e tabaco. Isso é nada. No fim, há o turismo e uma economia de serviços que, infelizmente para os cubanos, inclui uma próspera indústria do sexo e um traço nacional de trapaça como modo de sobreviver. Muito precisa ser feito para evitar que Cuba se transforme num tipo de sociedade criminosa organizada que temos visto em tantos outros Estados socialistas. Isso vai depender em grande parte de atitudes e políticas dos próprios governantes cubanos.
ANDERSON: Sim, é uma possibilidade. Quando o Papa João Paulo II visitou Cuba, em 1998, foi um momento significativo no qual os Castro pareceram estar dispostos a permitir que a Igreja atuasse como uma espécie de garantidora de alguma abertura política. Essa janela foi fechada em 2003, quando Bush invadiu o Iraque, e os Castro se sentiram ameaçados por uma mudança de regime inspirada pelos EUA. A insegurança aumentou com a doença de Fidel e os primeiros anos de Raúl no poder. O fato de Chávez ter surgido na última década como um benfeitor tornou a repressão viável. É possível que estejamos diante de um recomeço desse processo, que começou sob João Paulo II e foi depois congelado. Os líderes da Igreja cubana claramente se adaptaram à Revolução e adotaram uma visão de longo prazo. Isso é chave para que ela seja uma intermediária confiável com adversários políticos.
É possível revisar o modelo econômico da ilha sem mudanças na política?
ANDERSON: Isso é um híbrido do modelo de transição em China, Vietnã e outros Estados socialistas que optaram pela abertura econômica, mas sem concessões políticas. No final, vai depender da percepção de insegurança, e os Castro podem permitir que a Igreja atue como um garantidor para algumas limitadas liberdades políticas, mas nada que desafie a suprema autoridade do Partido Comunista. Eles são altamente conservadores. O tempo vai dizer se podem reprimir sua natureza burocrática e tolerar novas liberdades econômicas que comecem a realmente alterar o cenário social em Cuba.
ANDERSON: O câncer de Chávez e sua possível morte no futuro próximo representariam um mar de mudanças no cenário político da América Latina. Sem falar na própria Venezuela. Se o sucessor não continuar com a generosidade financeira regional, os países que a recebem, como Cuba, serão fortemente atingidos - isso pode ter um efeito similar para a ilha ao corte de subsídios da União Soviética na década de 90. E também vai determinar o nível de influência americana na região. Haverá uma oportunidade de ressurgimento do poder americano com uma nova configuração, mais respeitosa talvez, mas muito depende de quão sabiamente o presidente americano e seus emissários vão proceder. No passado, sabedoria não foi o principal traço de Washington na América Latina. Outra coisa: o poder americano tem diminuído como resultado dos erros cometidos nos anos Bush, da ascensão da China e da economia declinante dos EUA. O Brasil agora tem lugar na mesa de negociação no hemisfério, um lugar merecido e bem-vindo. A política externa americana em relação à região terá que levar isso em conta.
ANDERSON: A eventual morte de Fidel pode ser uma oportunidade para acabar com esse embargo anacrônico. Se os EUA jogarem duro de verdade, como têm feito até agora, então pode ser que esperem concessões econômicas reais, e algumas políticas também, mas não antes da reeleição de Obama como presidente. Ele precisa dos votos de cubano-americanos da Flórida.
ANDERSON: Penso que o Brasil tem um papel muito importante no hemisfério e que a líder brasileira pode, e deve, usar sua influência para calmamente obter algumas concessões com os cubanos. Será mais fácil para eles aquiescer aos pedidos do Brasil do que aos dos americanos. Ela pode escolher trabalhar de forma discreta agora, mas, se necessário, falar abertamente se a situação exigir. A libertação de prisioneiros políticos poderia ser a compensação para qualquer investimento brasileiro ou crédito financeiro. Não deve ser tão difícil e deveria ser feito.
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