Gazeta do Povo 31/10/2010 | Rubens Ricupero
Continuísmo parece ser a aspiração do país, a julgar pela popularidade do presidente e pelas sondagens eleitorais. Mas será de fato possível sustentar, depois das eleições, a situação de bem-estar que inspira esse humano e natural desejo? E se não for, não se está preparando terrível decepção em curto prazo?
Consumir sem poupar gera satisfação e acaba sempre em lágrimas. Durante anos, os americanos viveram além dos próprios meios até o naufrágio do qual tentam sobreviver poupando como nunca, pagando dívidas, dobrando as exportações em cinco anos.
No Brasil, a sensação de bem-estar não é inédita. Como antes da crise de 1998, ela provém em boa parte do poder de compra de moeda forte, de importações baratas, de viagens ao exterior ao alcance de muitos.
Contudo, o outro lado da moeda forte é o déficit em conta corrente que dobrou em doze meses e a liquidação gradual das exportações de manufaturas.
Como descolar o delicioso consumo do déficit aterrador se o primeiro é a causa do segundo? O déficit corrente não só está explodindo: seu financiamento piorou em qualidade.
Em lugar do investimento produtivo de longo prazo, o que financia o déficit em proporção de dois para um são os recursos estrangeiros de curto prazo, os mais voláteis, cuja saída produz a morte súbita.
A fim de atenuar o impacto do ingresso de US$ 72 bilhões de curto prazo na valorização do real, o Ministério da Fazenda aumentou o IOS e outras taxas.
Sua margem de manobra, no entanto, é limitada, pois, ao relutar em cortar os gastos do governo e reduzir a expansão do consumo, ele se torna refém da dependência de financiamento para o déficit.
Voltamos, assim, ao ponto de partida. O continuísmo, isto é, consumo sem poupança, ganha eleição, mas agrava o déficit corrente.
O financiamento do déficit, por sua vez, precisará de recursos de fora que vão valorizar mais a moeda, sufocar indústria e exportações, aprofundando de novo o déficit até o inevitável momento do pânico dos mercados e do colapso cambial.
Alarmismo? “Desta vez é diferente”? A análise apresentada pelo Fundo Monetário Internacional à reunião de Washington, duas semanas atrás, chega à mesma conclusão. A inundação de liquidez despejada sobre os mercados pelas autoridades americanas e de outros países vai acabar criando bolhas e pressionando as moedas nos emergentes.
A próxima crise começará em um deles. Os candidatos prováveis são os que já sofrem de valorização aguda da moeda combinada à deterioração fulminante do déficit corrente. Apesar de que o Brasil esteja nessa situação, há quem se tranquilize com o argumento da demanda chinesa pelas commodities e o futuro petróleo.
Poderíamos, assim, como a Austrália e a Noruega antes da produção petrolífera, conviver anos com déficits crescentes que seriam utilizados nos investimentos para desenvolver o pré-sal.
Mas terá a credibilidade dessas duas economias um país onde a megalomania inventa projetos irracionais e irresponsáveis como Belo Monte e o trem-bala?
Essas teriam sido boas questões para o debate eleitoral, mas agora é tarde: a resposta ficará para a contundente lógica da realidade.
Rubens Ricupero é diretor da Faculdade de Economia da Faap e do Instituto Fernand Braudel de São Paulo, foi secretário-geral da Unctad (Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento) e ministro da Fazenda no governo Itamar Franco.
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