Época - 27/09/2010
Professores que não ensinam e sorteios para entrar numa escola decente. O novo documentário do diretor de Uma verdade inconveniente expõe o desastre da educação americana e traz lições também para o Brasil
Marcelo Bernardes, de Nova York, e Camila Guimarães
Anthony estuda em uma das piores escolas públicas do país. Ele se esforça. É um dos melhores alunos de sua turma, de 5o ano. Nem sempre foi assim. Anthony nunca conheceu a mãe, e seu pai era viciado em drogas. Até o 2o ano, que repetiu, não tinha nenhum interesse pela escola. Com o incentivo e a ajuda dos avós, Anthony passou a estudar e agora sonha em ir para a faculdade. Para que meus filhos tenham melhor educação do que eu, diz. É um sonho difícil de realizar. Seu sucesso está ameaçado não só pela qualidade da escola que frequenta, como também pela vizinhança onde mora violenta e dominada pelo tráfico de drogas.
©Paramount Vantage
BINGO
Famílias pobres dos Estados Unidos em sorteio de vagas para escolas de alto desempenho. Futuro decidido na sorte
Essa é a realidade de vários estudantes das grandes capitais do Brasil. Mas Anthony mora em Washington, nos Estados Unidos, o país mais rico do mundo. Sua trajetória é contada em Waiting for Superman, o novo documentário de Davis Guggenheim, o mesmo diretor de Uma verdade inconveniente, que levou o Oscar em 2007 (e chamou a atenção de quem ainda não acreditava no aquecimento global). O filme estreou na semana passada nos Estados Unidos e promete causar burburinho ainda maior que seu trabalho anterior. A questão da educação é encarada como um dos maiores problemas do país e guarda uma surpreendente semelhança com o ensino público no Brasil.
O filme conta a história de Anthony e mais quatro crianças, a maioria de mesma origem pobre e todas com os mesmos ideais de boa educação, que tentam uma vaga para estudar nas escolas charter, escolas públicas que têm algumas regras diferenciadas e costumam ter melhor desempenho que a média do ensino público. É uma loteria. Literalmente. Pais e filhos torcem para que a bola colorida que sai de uma esfera aramada, numa cerimônia anual, tenha o mesmo número que o papel que lhes foi entregue. Em algumas charter, a chance de conseguir uma vaga é de menos de 5%. O suspense do sorteio é guardado para o final do filme. Não dá para sair do cinema sem ser afetado pelas expressões de esperança e desapontamento nas centenas de crianças.
Enquanto os alunos esperam para definir seus destinos, Guggenheim discorre sobre o que chamou de as idiotices dos adultos: as falhas do ensino público americano que, mesmo gastando por aluno mais dinheiro que qualquer outro país do mundo, não consegue ficar à frente de outros países ricos em rankings internacionais de matemática, leitura e ciências. Desde a década de 70, as médias dos americanos do ensino básico mal saíram do lugar. Guggenheim entrou nas salas de aula para descobrir por que os alunos não estão aprendendo. Viu professores que, em vez de dar aula, leem jornal. Aí estava a resposta. Professores ruins, mal formados e mal treinados reinam nas escolas, protegidos pelo poder dos sindicatos mais preocupados em garantir privilégios trabalhistas, como estabilidade de emprego e promoção por tempo de serviço.
Do lado dos mocinhos do filme estão os reformadores, educadores e gestores públicos que tentam driblar a rigidez dos sindicatos. Em uma das entrevistas que concedeu para a imprensa americana, Guggenheim que é sindicalizado afirmou que não dá mais para os sindicatos protegerem os maus professores. Está na hora de ajudar os bons.
Os problemas e as soluções mostrados por Guggenheim são em grande medida também brasileiros. Nos Estados Unidos, como no Brasil, há escolas inseridas em comunidades pobres, onde alunos e suas famílias estão expostos a violência, crimes, carências nutritivas, afetivas e culturais. Há um abismo que separa os que podem dos que não podem pagar por uma educação privada. Nos Estados Unidos, 90% dos alunos do ensino básico estão em escolas públicas. Aqui, são 86%.
E lá, como aqui e no resto do planeta , está-se chegando ao consenso de que a questão central da qualidade do ensino é a eficiência do professor. Assim como os Estados Unidos, o Brasil não tem políticas públicas fortes de valorização da carreira de professor, jargão exaustivamente repetido em greves de docentes que pedem aumento de salário. Salário é, sim, importante (no Brasil, um professor pode ganhar até 60% menos que um profissional de outra área com a mesma escolaridade), mas não o suficiente para dar o prestígio que a carreira tem de ter. É preciso investir na formação do professor e em um plano de carreira pautado no mérito, e não em tempo de serviço, diz Mozart Ramos, presidente do movimento Todos Pela Educação. Carreira de professor tem de ser objeto do desejo.
Esse foi o caminho adotado pelos países top em rankings internacionais de educação, como a Coreia do Sul e a Finlândia. Neste último, dar aula dá tanto prestígio que 100% dos professores se formaram nas faculdades entre os 30% com as melhores notas. Nos Estados Unidos, apenas 9% do terço que tira as melhores notas opta por ser professor. No Brasil, um sinal do desprestígio da carreira é que só 3% dos melhores alunos querem ser professor. Entre os 20% com as piores notas, 16% (cinco vezes mais) ambicionam dar aula.
©Paramount Vantage
ESPERANÇA
Anthony em sua classe, em Washington, uma das piores do país. Ele sonha com a faculdade
A atração permite a seleção dos melhores. Na Finlândia, só 1 de cada 15 candidatos a ser professor (que já eram todos excelentes) consegue passar no concurso público. No Brasil, professores assumem turmas mesmo sem tirar nota suficiente em provas que nem sequer medem sua aptidão para ensinar. Os concursos medem se o candidato conhece a Constituição, em vez de cobrar técnicas de sala de aula, afirma Maria Helena Guimarães, ex-secretária de Educação do Estado de São Paulo.
O que fazer com os professores que já estão dentro das escolas e não conseguem ensinar? O que tem dado certo nos Estados Unidos e em outros países da Europa é separar os bons dos ruins, treinar os ruins e, se ainda assim seu desempenho não melhorar, demiti-los. É aí que o embate com os sindicatos começa. No filme, Guggenheim compara a taxa de demissões em várias profissões. Entre médicos, 1 em cada 57 é demitido por ineficiência. Entre advogados, a taxa é de 1 para cada 97. Entre professores, só 1 a cada 2.500.
Em uma das cenas mais contundentes, a secretária de Educação de Washington, Michelle Rhee que há anos tenta driblar a regra da estabilidade de emprego para conseguir se livrar dos professores ruins , propõe ao sindicato um acordo: em troca de um considerável aumento de salário, os professores abririam mão da estabilidade e concordariam em ter parte de sua remuneração atrelada ao desempenho dos estudantes. Durante dois anos, o sindicato local nem sequer se mobilizou para votar a proposta (que passou depois do fim das filmagens). Pelo menos 12 Estados americanos criaram leis que relacionam o desempenho dos alunos à avaliação de professores. O Brasil tomou a mesma direção e criou avaliações nacionais e estaduais de desempenho dos alunos mas elas estão ligadas às escolas, não aos professores individualmente.
Na Finlândia, exemplo de boa educação, os melhores alunos querem ser professor. Aqui, os piores
Os sindicatos brasileiros, assim como os americanos, defendem acirradamente a estabilidade e a equidade salarial (que diz que todo professor deve ganhar o mesmo, independentemente de sua eficiência). Somos a favor de acabar com qualquer política de bônus, afirma Maria Izabel Noronha, presidente do Sindicato dos Professores do Estado de São Paulo. A bonificação (oferecida pelo governo de São Paulo) arrebentou com a carreira do professor. Porque, quando ele se aposenta, não leva esse benefício com ele.
Se há muitas semelhanças, porém, o Brasil é ainda pior que os Estados Unidos em um ponto crucial. O investimento em educação aqui é pífio. O Brasil investe por aluno um décimo do que investem os europeus e um terço a menos do que investem nossos vizinhos Chile e Argentina.
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