Gazeta do Povo Publicado em 07/10/2010
garantia da liberdade religiosa e do pluralismo não permite vedações como as que ocorreram na França, já que impediriam, no caso do véu das muçulmanas, o cumprimento de preceito religioso que não é ofensivo nem à moral, nem à ordem pública
Recentemente, o Senado francês aprovou lei proibindo o uso, na França, da burca e do véu integral, indumentárias tradicionais e com caráter religioso, das mulheres muçulmanas. No ano passado, a Suíça, em referendo nacional, proibiu a construção, em território suíço, de minaretes, aquelas tradicionais torres de templos muçulmanos. Também em 2009, a Corte Europeia de Direitos Humanos proibiu a manutenção, em escolas italianas, de crucifixos nas salas de aula. O interessante são os argumentos que fundamentaram tais decisões.
No caso da proibição de símbolos religiosos islâmicos, um dos argumentos que se usou foi o da preservação dos valores culturais europeus. Com efeito, enquanto na Arábia Saudita se veda a construção de igrejas e até a celebração da missa, nos países cristãos da atualidade, até os casos suíço e francês, não se teve notícia dessa reciprocidade negativa. Outro argumento, que se aplicou ao caso dos crucifixos, seria o da laicidade do Estado. Pergunta-se: procedem os fundamentos e as vedações mencionadas?
Nas relações entre Igreja e Estado, a história nos tem mostrado basicamente três posições: a) a da confusão entre o espiritual e o temporal, que se dá no Estado confessional, o qual assume uma religião como oficial e admite, ou não, a prática de outra em seu território, como ocorre, por exemplo, com o Irã, a Grécia e a Inglaterra; b) a da absoluta separação, que pode chegar ao antagonismo, como ocorreu nos países comunistas, em que, começando pela colocação do fator religioso como algo a ser vivenciado exclusivamente no âmbito privado, caracterizando o laicismo, chega-se à perseguição religiosa do Estado ateu; c) a da separação com colaboração entre o Estado e a Igreja, próprio do Estado laico, que reconhece a religião como elemento constitutivo dos valores humanos, culturais e sociais, a ser apoiada, respeitada a liberdade e o pluralismo religioso. Essa última posição, de equilíbrio aristotélico, parece ser a que melhor resolve o problema.
Ora, se, por um lado, os símbolos religiosos ligados à tradição cultural de um povo, como representativos de seus valores mais elevados, merecem ser resguardados e mantidos nos locais em que figuravam desde a constituição da civilização que o ostenta, como é o caso dos crucifixos em repartições públicas em países de tradição cristã, por outro, a garantia da liberdade religiosa e do pluralismo não permite vedações tais como as que ocorreram na França e Suíça, já que impediriam, no caso do véu das muçulmanas, o cumprimento de preceito religioso que, a rigor, não é ofensivo nem à moral, nem à ordem pública.
Em 2009, a assinatura, pelo presidente da República e pelo Papa Bento XVI, do Acordo Brasil-Santa Sé de regulação das relações da Igreja e do Estado no Brasil, veio a solver muitas dessas questões em nosso país.
Portanto, concluímos que os argumentos esgrimidos pelos organismos legislativos e judiciais europeus acabaram violentando inclusive os direitos humanos que propalavam defender, já que um dos direitos humanos fundamentais é o da liberdade religiosa e da valorização do fator religioso na vida humana.
Ives Gandra Martins Filho, ministro do Tribunal Superior do Trabalho, é membro do Conselho Nacional de Justiça (CNJ).
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