Autor(es): Rodrigo Craveiro
Correio Braziliense - 26/07/2010
Ex-presidente da Libéria será julgado em Haia por 11 acusações, incluindo crimes contra a humanidade. Ele teria recebido pedras preciosas em troca de armas para a guerra deflagrada pela Frente Unida Revolucionária.
Tamba tinha pouco mais de 20 anos e trabalhava em uma mina de diamantes do distrito de Kono, no leste de Serra Leoa. “Em agosto de 1994, ele foi assassinado. Seus intestinos foram removidos e remexidos, em busca de evidências de pedras que ele teria engolido”, contou ao Correio, pela internet, Alfred Gbakima, um engenheiro de 46 anos, que conheceu a vítima. “Meu país estava sob ocupação da Frente Unida Revolucionária (RUF)”, acrescentou. Muitos tiveram o mesmo destino de Tamba. A guerra civil que devastou a região, entre 1991 e 2002, deixou pelo menos 250 mil mortos e um rastro de barbáries. Mesmo quem não se ocupava da extração dos diamantes — muitas vezes forçada — era punido pelos rebeldes da RUF. Crianças, mulheres e homens tiveram braços e pernas amputados, uma forma de impôr o terror e a intimidação entre os civis. “Os mutilados aqui são cerca de 3 mil. Trabalhei uma vez em um campo de amputados de Freetown, fornecendo água e instalações de saneamento. Os cortes foram feitos geralmente nas mãos. Em alguns casos, os cotovelos acabaram arrancados”, disse Gbakima.
A ambição e a própria violência foram os meios usados para justificar a selvageria. Os diamantes recolhidos pelos mineradores escravizados eram usados pela RUF na compra de armas. Parte das gemas preciosas chegava às mãos de Charles Taylor, um senhor da guerra alçado à Presidência da Libéria com o slogan de campanha “Ele matou minha mãe, ele matou meu pai, mas eu votarei nele”. O ex-estadista é julgado pelo Tribunal Especial da ONU para a Serra Leoa, em Haia (Holanda), onde está preso e responderá por 11 acusações, entre elas a de crimes contra a humanidade, terrorismo contra a população civil, violência sexual e física, recrutamento de crianças, sequestros e trabalhos forçados, e pilhagem. “Eu estou convencido de que Taylor recebeu grandes quantidades de diamantes brutos da RUF e é provavelmente verdade que ele tenha levado as pedras para a África do Sul, onde se encontrou com a supermodelo
Naomi Cambpbell”, afirmou à reportagem o serra-leonês Lansana Gberie, autor de Uma guerra suja na África Ocidental: a RUF e a destruição de Serra Leoa.
Na próxima quinta-feira, Naomi prestará depoimento em Haia sobre um suposto “diamante de sangue” (1)presenteado por Charles Taylor em um jantar oferecido pelo então presidente sul-africano Nelson Mandela, em 1997. “Eu não quero estar envolvida no caso desse homem. Ele tem feito coisas terríveis, e não quero colocar minha família em perigo”, comentou a modelo britânica em entrevista ao talk-show de Oprah Winfrey. “Taylor é um homem excessivamente amoroso, e não estou surpreso que ele tenha oferecido diamantes à Naomi”, admitiu Gberie.
Gemas por armas
O canadense Ian Smillie foi o primeiro a testemunhar no Tribunal Especial da ONU para Serra Leoa, em janeiro de 2008. Autor de Sangue sobre pedra: ambição, corrupção e guerra no comércio global de diamante, ele assegurou à reportagem que as gemas foram usadas pela RUF para pagar por armas e munições. “Sem os diamantes, a guerra civil jamais teria durado tanto e não teria sido tão destrutiva. Esse mesmo conceito vale para Angola e para a República Democrática do Congo”, observa. Ele lembra que a promotoria apresentou um grande volume de evidências e arrolou dezenas de testemunhas no processo. “A evidência de apoio liberiano à RUF é impressionante”, diz. A RUF teria utilizado a Libéria — país então administrado por Taylor — como base para lançar os combates contra o presidente de Serra Leoa, Joseph Momoh.
Por sua vez, Gberie diz estar convencido de que os diamantes desempenharam um importante papel, ao sustentar o envolvimento de Taylor na guerra. “Uma vez que ele percebeu os enormes ganhos financeiros que obtinha, por meio do acesso aos campos de diamantes, tornou-se cada vez mais implicado nos atos violentos”, comenta o escritor e analista do Instituto de Estudos de Segurança (ISS) em Adis-Abeba (Etiópia).
Ainda de acordo com Gberie, o pesadelo em Serra Leoa começou a se delinear no fim da década de 1980, quando Taylor deixou Monróvia, capital da Libéria, dirigiu-se a Freetown e desafiou o governo corrupto do general Momoh a permitir o uso do aeroporto internacional como base operacional da Ecomog, a força de paz da África Ocidental. “Momoh concordou em um primeiro momento, mas depois abandonou o acordo e deteve Taylor por vários dias. Isso certamente influenciou o ânimo do liberiano contra o país vizinho”, admite o especialista do ISS. Ele aposta que o controle sobre o corredor de diamantes sustentou seu envolvimento com o conflito, mesmo após a deposição de Momoh, em 1992. Talvez tanta ganância não tivesse determinado o trágico destino dos serra-leoneses. Talvez Tamba tivesse escapado da morte cruel. E Naomi Campbell não passasse por tamanho vexame.
1 - Poder e violência
De acordo com o escritor serra-leonês Lansana Gberie, os diamantes de sangue são pedras recolhidas pelos exércitos rebeldes da África e vendidas ilegalmente no exterior. Os recursos adquiridos por meio do comércio ilícito são empregados no combate a governos legítimos e no enriquecimento dos próprios líderes de facções rebeldes. O fenômeno ocorreu no Congo e em Angola. No entanto, a Libéria — sob o governo de Charles Taylor — esteve intimamente envolvida com essas pedras preciosas, usadas para controlar a Frente Unida Revolucionária (RUF), em Serra Leoa.
Estou convencido de que Taylor recebeu grandes quantidades de diamantes brutos da RUF e é provavelmente verdade que ele tenha levado as pedras para a África do Sul”
Lansana Gberie, escritor
Personagem da notícia
Crueldade e ganância
Michael Kooren/AP - 7/1/08
Charles Ghankay Dahkpannah Taylor (foto) nasceu em 1948 num subúrbio rico de Monróvia, de pai negro americano e de mãe liberiana. Formado em economia no Bentley College, de Massachusetts, ele entrou em 1979 na função pública liberiana, onde foi rapidamente chamado de “superbonder” por sua propensão a desviar grandes quantidades do dinheiro que passavam por suas mãos. Acusado pelo presidente Samuel Doe, em 1983, de ter desviado US$ 900 mil, ele se refugiou nos Estados Unidos, onde foi detido antes de escapar e fugir para a Costa do Marfim. Criou vínculos com a Líbia e com o presidente do Burkina-Faso, Blaise Compaoré. Seis anos depois, na noite de Natal de 1989, iniciou com um grupo reduzido de combatentes uma das mais atrozes guerras civis do continente africano.
Doe foi torturado até a morte em setembro de 1990 pelos homens de Taylor. Pelo menos sete facções rivais se enfrentaram durante o conflito. A NPFL de Taylor era uma das mais temidas. Seus combatentes, muitas vezes drogados, foram acusados dos massacres mais cruéis, além de mutilações, estupro e canibalismo. Taylor generalizou o recrutamento à força de crianças-soldados, muitas vezes obrigadas a cometer atrocidades em suas aldeias de origem. Em 1997, depois de um acordo assinado sob o patrocínio da comunidade internacional, os liberianos o elegeram presidente. Em 1999, os problemas começaram para Taylor, com o início da rebelião dos Liberianos Unidos pela Reconciliação e a Democracia (LURD). Apoiado por vários países vizinhos e extraoficialmente pelos Estados Unidos, o LURD avançou na direção de Monróvia. A guerra acabou depois de três meses de cerco da capital, de junho a agosto de 2003. Taylor deixou o país em 11 de agosto de 2003 para um exílio na Nigéria.
Antes mesmo de sua chegada ao poder, um de seus seguidores, Foday Sankoh, havia exportado a guerra à Serra Leoa em março de 1991 com a Frente Revolucionária Unida (FRU). Foi o início de outro conflito, que duraria uma década (1991-2001) e deixaria 120 mil mortos. Taylor é acusado pela ONU de ter alimentado esse conflito através do tráfico de armas e de diamantes com os rebeldes.
Depoimento
Ausência de leis exigiu reforma
Arquivo Pessoal
“Até 2003, a venda de diamantes brutos era totalmente desregulamentada. Os diamantes poderiam se mover facilmente de um país a outro sem obstáculos. Por isso, tornaram-se um meio perfeito para a lavagem de dinheiro e para a compra de bens ilícitos, como drogas e armas. Eles são chamados de ‘diamantes de sangue’ porque foram usados para adquirir armamentos. Seu efeito imediato foi a guerra. Os números de pessoas que morreram nas guerras do diamante chegam a milhões. Não sei se a modelo Naomi Campbell aceitou diamantes. Essa é uma alegação que a corte gostaria de explorar.
Muitas pessoas, é claro, aceitam diamantes como presentes todos os dias — não de senhores da guerra, mas de noivos, amigos e parceiros. A tragédia dos diamantes é que, até 2003, ninguém na indústria percebeu o que estava ocorrendo. Desde 2003, quando o Processo Kimberley veio à força, o contrabando continuou e as regulações dos governos se enfraqueceram. Havia sérios problemas no Brasil, em 2006, que exigiram uma reorganização completa das leis sobre diamantes. Hoje, 100% dos diamantes da Venezuela são contrabandeados para fora do país, muitos por meio do Brasil. Se o Processo Kimberley não pode controlar diamantes em países pacíficos, como se espera controlá-los onde há maior chance de violência?”
Ian Smillie, autor de Sangue sobre pedra: ambição, corrupção e guerra no comércio global de diamante e um dos arquitetos do Processo Kimberley — um sistema de legislação sobre diamantes.
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