Autor(es): Ana D"angelo, Victor Martins e Sandra Kiefer
Correio Braziliense - 19/06/2011
Egressos das camadas mais baixas de renda sobem na vida à custa de muita dedicação e estudo. Especialistas cobram melhora no ensino
Da favela para um bairro nobre de Belo Horizonte. De uma renda familiar menor que um salário mínimo para R$ 27 mil mensais. Da base para o topo da pirâmide social. No caminho, muito estudo. “É diferente de ganhar na Mega-Sena. A mudança não é do dia para a noite nem tampouco está vinculada ao que a gente é capaz de consumir, mas sim ao que é capaz de produzir que seja duradouro”, ensina o procurador de Minas Gerais José dos Passos Teixeira de Andrade. Hoje, ele usa terno Hugo Boss comprado em Nova York e é dono de um carro Honda Civic ano 2009.
O menino que chegou há 34 anos à favela Beco do Cíntia aos 8 de idade, com a mãe e quatro irmãos, coleciona méritos conquistados, um por um em seus 42 anos de vida — desde os bicos de office-boy e de ajudante de pedreiro à aprovação num dos cursos mais concorridos do país, na Universidade Federal de Minas Gerais, aos 24 anos. Tudo alcançado após um ano e meio de estudos solitários em casa, pois não havia dinheiro para pagar faculdade particular. Ser aprovado no concurso de procurador do estado, um dos melhores cargos da área jurídica, premiou uma pessoa que enfrentou esgoto a céu aberto em passagens estreitas nas ruas e só passou a ir à escola aos 12 anos.
Caminho semelhante pretende seguir Elias Mateus da Silva, 31 anos, que, na semana passada, viveu os seus últimos dias como lavador de carros, atividade que exerce desde os 14, tirando cerca de R$ 800 em média de renda. Neste mês, ele conclui o curso de direito, que frequenta à noite. Em seguida, pretende prestar exame da Ordem dos Advogados do Brasil. Ele pretende ascender rapidamente da classe D para a C, já trabalhando como advogado. Seu sonho é integrar o grupo dos que ganham mais. “Só sei que não vou parar de estudar. Quero melhorar o amanhã, mudar de vida”, planeja.
“A educação é o fator de diferenciação social. Quanto maior a escolarização, maiores as chances de ascensão”, destaca a antropóloga Luciana Aguiar, diretora da consultoria Plano CDE. Segundo ela, apesar da concentração em bens de consumo, a escalada da classe média foi, em parte, acompanhada do acesso a serviços como plano de saúde e escola particular para os filhos. As famílias passaram a comprometer parte da renda com esse tipo de despesa, além da compra de bens de consumo.
Escolaridade
Segundo Luciana Aguiar, uma marca da nova classe média é ter os filhos com mais anos de escolaridade do que os pais. Enquanto nos segmentos mais altos, A e B, a diferença é de apenas um ano em média entre pai e filho, na base da pirâmide, ela chega a quatro anos. Pesquisas da Plano CDE mostram que a classe C é o segmento que tem o maior número absoluto de universitários, 1,8 milhão, acima dos 1,3 milhão da classe B e dos 784 mil da A.
O estudo tornou-se prioridade para José Marcelino da Silva, 42 anos, quando conseguiu deixar a profissão de vigilante para virar servidor público do governo do Distrito Federal. Com a melhora na renda, começou a faculdade de gestão pública. “Foi um avanço e tanto”, comemora. Mas o orçamento ainda é apertado. “Algumas pessoas gastam mais do que podem. Tenho consciência de que há coisas que não posso comprar.”
Poder pagar plano de saúde para os filhos é uma das principais conquistas que Onorina Bezerra Souto, 59 anos, destaca, desde que conseguiu abrir um salão de beleza. A nova fonte de renda juntou-se à do marido, servidor público, e a família já reformou a casa. “Hoje, compro mais sapatos e roupas”, empolga-se. Entusiasmada com o sucesso do negócio e o momento econômico, já abriu uma filial.
Na periferia do Distrito Federal, em uma casa que é parte de madeira, parte de alvenaria, Sandreci Dias, 39 anos, mora com o marido, a irmã e três crianças. A família celebra as paredes levantadas depois que a renda do marido, carpinteiro, dobrou de R$ 400 para R$ 800 em três anos. A rua na Vila Estrutural não tem asfalto, mas já não falta mais água. Sandreci e o marido planejam terminar a casa. Apesar da vida ainda
muito difícil, a irmã Clausete, 27 anos, termina, no fim do ano, o curso superior de administração. “Espero conseguir um emprego na minha área”, diz.
Bolha
Apesar dos diversos casos de sucessos dos membros da classe média que miraram o estudo como meio de ascensão social, os especialistas estão céticos quanto à continuidade da tendência. “Interpreto esse momento mais como uma bolha, pois não está havendo planejamento de longo prazo, que melhore a capacidade dessa população para ter acesso ao mercado de trabalho cada vez mais exigente. Temo que possamos estar queimando essa oportunidade, que pode ser apenas um episódio e não um processo”, alerta o sociólogo Marcel Bursztyn, professor da Universidade de Brasília (UnB).
Segundo ele, a China tem combinado o robusto crescimento econômico com melhoria no sistema produtivo e na capacitação da mão de obra. “Tenho dúvidas se conseguiremos manter as taxas de crescimento econômico se não houver ações de governo voltadas para o desenvolvimento tecnológico e melhoria do sistema de educação”, diz.
O geógrafo Aldo Paviani, também da UnB, concorda. “Existe uma lacuna, que é a qualidade do ensino, principalmente na parte intermediária, entre o ensino fundamental e o médio”, afirma. “É fundamental, para a economia, um ensino médio mais robusto, com escolas que preparem os alunos, não só para o vestibular, mas para a vida profissional. A qualidade do trabalho é o grande desafio para a década que se avizinha e talvez não estejamos preparados para oferecer ao mercado o que ele precisa.”
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