quarta-feira, 11 de julho de 2012

Somos todos um pouco trapaceiros

Autor(es): Danilo Venticinque

Época - 09/07/2012

Desde o início, atesto minha inocência." A frase foi dita num discurso pelo senador Demóstenes Torres (sem partido-GO) antes que o pedido de cassação de seu mandato fosse encaminhado ao Senado. Mas não causaria estranhamento na voz de qualquer um dos grandes trapaceiros da história. Acusado de envolvimento com o bicheiro Carlinhos Cachoeira, ele seguiu a regra clássica de quem é pego na trapaça: dizer-se inocente até o fim e, se possível, acreditar nisso. Para provar quanto a prática é antiga, basta lembrar outro Demóstenes - o político grego (384-322 a.C.), que, acusado de distribuir e receber propinas, morreu sem admitir sua culpa. Seu contemporâneo, o filósofo Diógenes de Sínope (412-321 a.C.), andava pelas ruas com uma lamparina, dizendo estar à procura de um homem honesto. Não há notícias de que o tenha encontrado.

A trapaça originou-se muito antes na Grécia Antiga. Em seu livro O gene egoísta, o biólogo Richard Dawkins afirma que a desonestidade é um comportamento incentivado pela seleção natural. O desejo de levar vantagem sobre nossos semelhantes nos torna mais aptos a sobreviver. desde que o segundo homem das cavernas roubou a primeira pedra lascada - para a indignação do primeiro homem das cavernas -, os genes da trapaça prosperam entre os homens. Os honestos, aos poucos, foram se tornando tão escassos que nem a lamparina de Diógenes conseguia encontrá-los. A tendência natural do homem para a trapaça é tão difundida entre os teóricos que o cientista Edward O. Wilson, um dos poucos a dizer que somos altruístas por natureza, foi contestado numa carta que 130 biólogos renomados enviaram à revista Nature com questionamentos aos resultados das pesquisas divulgados em seu livro recente, The social conquest of Earth (A conquista social da Terra).

Embora nossa natureza trapaceira seja quase um consenso, o mecanismo da trapaça é objeto de discussões. Segundo o modelo tradicional de custo-benefício, toda vez que nos encontramos numa situação em que a trapaça é possível, calculamos intuitivamente se os benefícios que teríamos justificam o risco de sermos pegos. E então decidimos se vale a pena estacionar naquela vaga proibida, tentar driblar a Receita Federal ou baixar aquela música na internet. Apesar de lógico, esse modelo deixa de fora um fator importante: nosso desejo de parecer honestos, para os outros e para nós mesmos. Mesmo que seja para ter o direito de reclamar das trapaças dos outros, como faz o senador Demóstenes e como fazia sua contra-parte grega há dezenas de séculos.

Em seu livro A mais pura verdade sobre a desonestidade (Elsevier, 260 páginas, R$ 69,90), o psicólogo israelense Dan Ariely propõe uma nova explicação para o funcionamento da trapaça. Autor dos best-sellers científicos Previsivelmente irracional e Positivamente irracional, que exploram a irracionalidade de alguns aspectos do comportamento humano, Ariely sugere um modelo mais passional e menos calculista que a análise de custo-benefício. Segundo ele, são poucos os trapaceiros patológicos, capazes de seguir seus impulsos toda vez que se veem em condições de levar vantagem sobre os outros de forma ilícita. Em compensação, todos nós somos capazes de pequenas trapaças ocasionais e acumulamos algumas vantagens ao longo dos anos, sem que sejamos obrigados a encarar nossa desonestidade. Trapaceamos aqui e ali. Mas, como seguimos as regras na maior parte do tempo, continuamos nos achando honestos. Há, dentro de cada um de nós, um pequeno Demóstenes, que permanece dormente, mas mostra as garras de tempos em tempos.

Para quem se acostumou a execrar os grandes trapaceiros sem colocar em dúvida a própria honestidade, a ideia causa indignação. “Pensei em chamar meu livro de ‘Por que todos são um pouco desonestos, menos você’, mas achei que as pessoas precisavam refletir sobre seu comportamento”, disse Ariely a Época. “O fato de nos considerarmos honestos mostra como a trapaça ocorre de forma irracional e quão pouco conhecemos nossas personalidades.” A seu convite, decidi fazer um breve e vexatório exame de consciência. Até a chegada do iTunes ao Brasil, meu computador era repleto de músicas de procedência duvidosa. Na escola e na faculdade, participei de pequenas e inocentes fraudes acadêmicas ao lado de meus colegas. Menti algumas vezes para minhas namoradas (todas, menos a atual), nem sempre por motivos nobres. Os pontos em minha carteira de motorista denunciam desobediências ocasionais às leis de trânsito. Por sinal, consegui a habilitação em circunstâncias inusitadas: o examinador me confundiu com um dos inúmeros alunos que haviam comprado a carteira, e confesso não ter me esforçado muito para convencê-lo do contrário. Acabei fazendo uma prova muito mais fácil do que esperava. Apesar desses deslizes, não me considero uma pessoa desonesta nem perdi a capacidade de me indignar diante de grandes trapaças. O que explicaria essa atitude?

Como resposta a essa pergunta, Ariely propõe o que chama de “regra dos 15%”. Segundo ele, pessoas comuns tendem a trapacear em 15% das oportunidades. Elas se sentem mais à vontade quando a trapaça rende pequenas recompensas, não grandes vantagens. É mais fácil manter uma imagem honesta de si mesmo sem desrespeitar os instintos trapaceiros. Ariely chegou à regra depois de repetir uma série de experimentos sociais em diferentes países. No experimento mais simples, os voluntários eram convidados a resolver uma série de problemas de matemática e avisados de que receberiam um bônus em dinheiro para cada resposta certa. Candidatos cujas provas eram verificadas e corrigidas por um professor resolviam, em média, quatro de cada dez exercícios, ganhando um total de US$ 4. Noutro grupo, os professores davam aos candidatos uma folha de resultados para conferir suas próprias respostas e, em seguida, dizer quantas perguntas acertaram. A média de acertos - e de ganhos - subiu para quase seis. Alguns trapaceavam muito, mas a maioria se sentia satisfeita com uma pequena dose de desonestidade. “Conseguimos nos sentir bem conosco quando dirigimos a uma velocidade 15% acima do limite de velocidade, ou quando pagamos 15% a menos do que deveríamos no Imposto de Renda, ou até mesmo quando comemos 15% a mais do que planejávamos numa dieta”, afirma Ariely.

Para o economista e filósofo Eduardo Giannetti, autor do livro Autoengano, nossa tendência a esconder de nós mesmos essas pequenas falhas pode ser explicada pela influência da seleção natural na maneira como nos comportamos. “O trapaceiro que engana a si mesmo é mais eficiente que o trapaceiro que age de caso pensado”, afirma Giannetti. “Cada pessoa é desonesta num grau diferente, mas, quando conseguimos nos convencer de que somos honestos apesar dessas pequenas trapaças, é muito mais fácil convencer os outros de que somos honestos.”

Numa situação normal, sem grandes estímulos à trapaça, nossos mecanismos de autoengano funcionam bem quando seguimos a regra dos 15%. Mas há fatores que nos tornam capazes de trapacear ainda mais sem manchar nossa boa imagem. Nossas pequenas trapaças se tornam maiores quanto menor for o esforço para explicá-las de modo racional. Nos experimentos feitos por Ariely, os níveis de trapaça aumentavam muito quando as pessoas viam outros trapaceiros em ação - é a desculpa do “todo mundo faz”, eternizada na política brasileira pelo ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, depois de ser acusado no escândalo do mensalão de usar caixa dois em sua campanha na eleição de 2002. Outro fator social que pode nos tornar mais trapaceiros é a vingança. Se, por algum motivo, nos sentimos ofendidos por alguém, as chances de sermos honestos com essa pessoa diminuem quando houver a oportunidade de trapaça. Num teste de honestidade feito num restaurante da Califórnia, 45% das pessoas avisaram o garçom e devolveram o troco quando receberam dinheiro a mais do que deveriam. Porém, quando o garçom interrompia os pedidos para falar ao celular e não pedia desculpas ao cliente, a percentagem diminuía para 14%. Numa escala maior, isso explica por que muitos se sentem mais à vontade para pagar menos impostos ou desrespeitar as leis do trânsito quando não estão satisfeitos com o governo. Das intrigas individuais à indignação com grandes instituições, a vingança é um combustível para a desonestidade em todas as instâncias.

Além dos fatores sociais, há características pessoais que nos tornam mais propensos à trapaça. Pessoas mais criativas tendem a trapacear mais - não só por ter mais facilidade para criar justificativas racionais para seus deslizes, mas também pela capacidade de inventar novas maneiras de quebrar as regras. Quem enfrenta vários conflitos de interesse no cotidiano tem mais chance de trapacear e, por isso, está mais exposto ao risco da desonestidade. Quem trabalha em profissões estressantes também tende a ser mais desonesto. O motivo é o esgotamento: como, para manter a honestidade, é preciso fazer o esforço de conter nossas tendências desonestas, o cansaço mental enfraquece nossas defesas. No teste aplicado por Ariely com os problemas de matemática, os participantes cansados trapaceavam até 20% a mais que a média.

A importância da primeira trapaça também é grande para definir nossa capacidade de fugir dos deslizes futuros. Quem já trapaceou uma vez tem uma chance maior de repetir a mesma trapaça, muitas vezes em uma escala mais ampla. É o que Ariely chama do efeito “que se dane”. A explicação que usamos para a primeira trapaça se consolida em nossa mente, e a partir daí o conflito moral passa a ser ignorado. É um comportamento análogo ao de quem não consegue se controlar quando está de dieta. Depois do primeiro pedaço de bolo, aumenta muito a chance de comermos o bolo inteiro e deixarmos a salada para a próxima segunda-feira. Com base nisso, Ariely afirma que práticas desonestas consideradas “aceitáveis” pela sociedade podem nos tornar mais trapaceiros em outros setores da vida. Um jovem que baixa músicas ilegalmente na internet, por já ter ignorado uma regra da sociedade, tem mais chance de colar numa prova ou de mentir para um professor do que um jovem contra a pirataria.

Isoladas, as pequenas trapaças parecem inofensivas. Somadas, elas causam prejuízos tão graves quanto a ação de um grande trapaceiro. No livro, Ariely cita a investigação do sumiço de US$ 150 mil no balanço de uma rede de lojas de lembrancinhas em museus americanos. A busca pelo responsável pelo desvio do dinheiro não teve sucesso, até que os investigadores depararam com um vendedor que roubara US$ 60. A investigação revelou que o rombo fora causado por centenas de pequenos furtos, feitos por vários dos jovens e idosos que trabalham como voluntários no local. Se todos fossem punidos, mais da metade dos quase 300 funcionários teria de ser dispensada. A solução foi implantar controles mais rigorosos no acesso aos caixas. Numa escala maior, não seria surpreendente se o impacto de pequenas incorreções nas declarações de imposto de Renda de milhões de “trapaceiros ocasionais” fosse tão prejudicial aos cofres públicos quanto as trapaças dos grandes sonegadores.

Embora sejam poucos os trapaceiros patológicos, que tentam levar vantagem sobre os outros em todas as oportunidades, uma série de más escolhas e condições favoráveis à desonestidade pode transformar qualquer um em grande trapaceiro. “Essa afirmação pode parecer chocante para uma pessoa normal que se considera honesta, mas os grandes trapaceiros de hoje também não imaginavam essa possibilidade”, afirma Ariely. “E, provavelmente, muitos deles se consideram honestos até hoje.”

A busca por uma sociedade mais honesta está longe de ser inviável. Admitir nossa tendência natural à trapaça e ao autoengano é o primeiro passo para que busquemos maneiras de evitar falhas. “Quanto mais entendermos o que nos torna desonestos, mais fácil será o esforço para mantermos a honestidade”, diz Ariely. Se soubermos em que condições temos mais chances de trapacear, é possível fazer um exercício de autocontrole e evitar essas situações. Podemos abrir mão de tomar decisões morais difíceis quando estamos cansados ou de preencher a declaração de imposto de Renda quando estamos muito irritados com a ineficiência do governo (ninguém disse que seria fácil...). Sabendo da influência que a primeira trapaça tem sobre nossas decisões futuras, podemos lutar para combater pequenos deslizes, como baixar músicas na internet ou parar numa vaga proibida. E, conhecendo o funcionamento do efeito “que se dane”, é mais fácil retomarmos a consciência antes de comermos o segundo pedaço de bolo, piratearmos o álbum novo de uma banda que admiramos ou tomarmos mais uma multa por estacionar num local proibido.

Da mesma forma que a soma das pequenas trapaças de pessoas normais pode ter um impacto negativo maior que a ação de um grande trapaceiro, a soma dos pequenos esforços individuais para manter a honestidade pode ter um impacto positivo maior que uma “faxina” entre os políticos corruptos. “Quando as leis não têm a adesão das pessoas, não há esforço governamental capaz de impor a honestidade”, afirma o filósofo Eduardo Giannetti. Eliminar a trapaça por completo seria uma utopia - sobretudo na vida pessoal, quando muitas vezes temos de mentir para seguir regras básicas de convívio. “Um homem nunca deve ser 100% honesto na hora de dizer à mulher se ela parece mais gorda”, diz Ariely. “Mas, nos negócios e na política, não haveria prejuízos à sociedade se a trapaça fosse eliminada.” Se nosso instinto natural para pequenas trapaças fosse usado apenas para evitar situações embaraçosas na vida pessoal, o mundo teria menos grandes trapaceiros. E nós, apesar de nossas falhas, poderíamos criticá-los sem correr o risco de sermos desmascarados - como aconteceu com grandes personagens da história e muitos políticos brasileiros.

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