Domingo, Julho 03, 2011
Com mais de 50 anos de escrevinhação nas costas, descobri algumas
ideias que muita gente faz da vida de um escritor. Por exemplo, tem
quem ache que os escritores, notadamente entre eles mesmos, só falam
difícil, uma proparoxítona para abrir, uma mesóclise para dar classe e
um tetrassílabo para arrematar. "Em teu parecer, meu impertérrito
amigo", perguntaria eu ao Rubem Fonseca, durante nosso almoço
periódico, "abater-se-á hoje, sobre a nossa urbe, uma formidanda
intempérie?" Ao que o Zé Rubem reagiria com uma anástrofe, um
mais-que-perfeito fazendo às vezes do imperfeito do subjuntivo e uma
aliteração final show de bola, coisa de craque mesmo. "Augure do tempo
fora eu, pressagiá-lo-ia libentissimamente", responderia ele.
"Todavia, de tal não me trato." E assim iríamos almoço afora,
discutindo elevadíssimos assuntos, em linguagem só compreensível por
indivíduos especiais.
Além de falar difícil, os escritores são ricos. Todo mundo acha que o
escritor com quem se defronta é o mesmo que, segundo os jornais,
lançou oito best-sellers em sucessão nos Estados Unidos e os vendeu
por todos os dólares disponíveis em Hollywood, além de ter dormido com
nove em cada dez estrelas de cinema. Muitos não acreditam que o
escritor, quando ganha com o que faz, leva entre 5 e 12% do preço do
livro na livraria. Na verdade, a imensa maioria dos escritores tem que
se virar em outras atividades, como a de professor ou de jornalista,
nos intervalos das quais, desassistido e muitas vezes com fama de
maluco, teima em ceder a uma vocação imperiosa ou ao que lá o impila a
escrever.
E acredita-se muito nas matérias que, de tempos em tempos, ressurgem
com uma regularidade que as faz parecer sazonais, a respeito do boom
experimentado por nossa literatura no exterior. Com exceção de alguns
dias como objeto de uma feira importante, nunca houve boom nenhum. As
editoras, livrarias e feiras, de modo geral, criaram uma categoria
literária e lá socam brasileiros, peruanos, chilenos, cubanos,
argentinos e toda a malta latina. Saem daí noções estapafúrdias, como
"cultura latino-americana". Já contei aqui como fui recebido, uma vez,
na Áustria, por uma "noite de cultura sul-americana", que passei
ouvindo índios andinos tocando aquelas flautas deles. O ensino de
língua e literatura de língua e literatura em português é
frequentemente enfiado em departamentos de espanhol e português, de
verbas curtas, equipes minúsculas e prestígio mínimo.
Os brasileiros portam a carga adicional da Amazônia. Na Alemanha,
falando em público, eu notava que algumas pessoas acreditavam que
praticamente todo o Brasil era a Amazônia e achavam que, assim ou
assado, poucos brasileiros viviam longe dela. Não é incomum que nos
tomem satisfações pessoais pela situação da Amazônia como descrita
pela imprensa local. E os índios são também obrigatórios. Se o
palestrante brasileiro ousar afirmar que nunca viu um índio, como
aconteceu comigo (eu só tinha visto o Juruna, comendo frango de paletó
e gravata, na casa de Darcy Ribeiro), pode ser tido na conta de
mentiroso cínico.
O brasileiro que se meter a discutir problemas literários, digamos,
universais não obterá a atenção de ninguém. Se aparecer um filósofo
brasileiro, vão achar que é uma aberração. E isso acontece também em
outras áreas. Balé brasileiro tem que basear-se em danças de origem
africana ou indígena, com música percussiva e, se possível, gente
pelada no palco. Para balé moderno brasileiro, torcem o nariz, assim
como para qualquer manifestação de áreas vistas como ilegítimas para
nós. E, sim, respondemos sempre a perguntas sobre identidade nacional
- eles lá mudando de país e povo na mera travessia de uma rua e nós
aqui, com bem mais território que a Europa ocidental e tudo quanto é
tipo de gente misturada, falando a mesma língua e se considerando o
mesmo povo. Muitos não se conformam, saem resmungando das palestras e
elaboram teorias complexas, mostrando cisões de todos os tipos no povo
brasileiro, as quais não percebemos nem quando muito explicadas por
eles.
Os escritores africanos partilham conosco certos problemas. Talvez
ainda em maior escala do que nós, são rotulados simplesmente de
"literatura africana". Tenho vários amigos em vários países africanos,
que não aguentam mais serem escritores africanos, metidos no mesmo
barco que todos os originários de nações negras. A identidade de uma
nação como essas não é vista por sua história, sua língua, sua
religião, seus costumes, sua cultura, enfim, mas, sim, através da
estéril, pobre e equivocada ótica racial - são todos negros, logo são
iguais, onde haver mais igualdade do que nisso?
Se a minha cultura, no episódio da Áustria, foram os índios andinos,
bem mais complicadas serão as homenagens à "cultura" africana. Não
canso de apontar a completa falta de sentido dessa expressão, pois um
continente como a África, que deve dar umas três Américas do Sul, só
tem uma cultura? Está na hora de até nós mesmos, brasileiros, negros
ou não, pararmos com essa história de "africana" (não convide para a
mesma mesa um zulu e um masai), "música africana" e não sei o que mais
lá africano, assim fomentando a visão equivocada e colonialista de uma
África homogeneizada pela cor da pele e não partilhada por povos que
além dela pouco mais têm em comum.
Comecei a escrever tudo isso por causa da Flip, que vem aí, no fim de
semana. Fui escrevendo, fui escrevendo e, quando dei por mim, já tinha
acabado o espaço. Eu vou aparecer por lá e sei que vai ser bom. Foi
somente por precaução que pedi que não fizessem homenagem à minha
cultura e dispensassem algum trio elétrico porventura contratado.