Observatório da Imprensa
Por José Alexandre em 8/6/2010
No jornal O Estado de S. Paulo de 24/05/2010, em "A educação vem em sexto lugar", temos uma entrevista com o empresário e presidente do movimento Todos pela Educação, Jorge Gerdau Johannpeter. Num país que não priorizou a educação pública, vemos como saudável a iniciativa do empresário de encampar seu movimento após sentir que seus operários, com pouca educação formal, não produziam o suficiente. Vale registrar que certa feita o historiador Evaldo Cabral de Melo afirmou que nossa elite sempre foi burra. truncado noção de que falta investimento e a necessidade de gestão adequada na educação: "Faltam recursos para a educação? Falta gerenciamento? Eu diria que os recursos são insuficientes em relação ao PIB. Mas o problema hoje é menos de recursos e mais de gestão. O Brasil precisa de mais recursos com melhoria de gestão."
Que em nosso país a coisa pública é mal gerida não chega a ser novidade. Entretanto, o problema maior talvez seja de outra ordem. Exemplo disso tivemos no jornal O Globo em "A educação passada para trás". Na matéria, técnicos do MEC afirmam que 21 estados deixaram de repassar 1,2 bilhão de reais ao ensino básico através do Fundeb (Fundo de Desenvolvimento da Educação Básica), direcionando o montante a outros setores. Algumas secretarias de Educação se manifestaram, afirmando que o MEC errou. As justificativas poderiam nos deixar tranquilos caso não soubéssemos que no Brasil a desonestidade é prática corrente.
Já em Veja, edição 2164, de 12 de maio de 2010, temos mais um ataque ao emprego das teorias construtivistas na educação. Infelizmente, um assunto que merece ser discutido de forma aprofundada recebe tratamento superficial no semanário da editora Abril. Muitos educadores já perceberam que algo vai mal na educação infantil, dado o número de egressos no sexto ano, ou quinta série, com defasagens que não se esperam nesta fase. Evidente que tal situação não é culpa apenas do construtivismo, que tem bastante força no Brasil, mas demonizar este conjunto teórico em benefício de uma suposta "pedagogia tradicional" não ajuda em nada.
Indignação passa depressa
Como vimos, O Estado de S. Paulo se preocupa em entrevistar um empresário preocupado com a educação no país. Isso não deixa de ter valor simbólico, considerando que o histórico da elite nacional não registra nenhum tipo de preocupação com a educação das camadas desfavorecidas, ainda que para explorar sua mão-de-obra. Ainda que não sejamos tão entusiastas das favorecidas, ainda que para explorar sua truncado visão empresarial de Gerdau sobre a educação, ponto para o jornal e a colunista.
Sobre a reportagem de O Globo, mesmo que a contabilidade do MEC tenha falhado em algum ponto a respeito do repasse das federações ao Fundeb, de forma alguma soa implausível que os estados desviem verbas da educação para outros setores. Não percebemos isso como um absurdo justamente pelo fato de a educação nunca ter recebido a devida importância em nosso país, tanto pelos dirigentes políticos quanto pelas pessoas simples. Ainda que nos sintamos indignados diante de uma reportagem que noticie desvios de verbas públicas que poderiam reformar e ampliar escolas, a indignação passa depressa.
A elite sempre foi burra
Nesse cenário parece importar menos ainda as discussões sobre como ensinar, seja na educação infantil ou nas outras fases da educação básica. Se contamos com escolas mal aparelhadas e com acomodações insuficientes para a população escolar além de professores mal remunerados e desmotivados, por que alguém daria a devida importância então para as teorias cognitivas que norteiam a ação dos mesmos professores? A questão é que na visão peessedebista de Veja, o principal problema para a educação é a má gestão dos recursos, idéia também presente na entrevista com Gerdau (este último ao menos admite que faltam investimentos).
Em resumo, podemos afirmar que o sistema educacional brasileiro não consegue proporcionar formação adequada à população. Mesmo a formação que leva à maior produtividade nas grandes indústrias. Alguns empresários começam perceber isso de forma tardia. Como de certa feita afirmou o historiador Evaldo Cabral de Melo, nossa elite sempre foi burra.
quinta-feira, 10 de junho de 2010
Assim caminha a educação
O espírito do Altalena
Autor(es): Demétrio Magnoli
O Estado de S. Paulo - 10/06/2010
Dois navios, separados por mais de seis décadas, iluminam o dilema que atormenta Israel. No dia 22 de junho de 1948, por ordem de David Ben-Gurion, chefe do governo provisório de Israel, as Forças Armadas do novo Estado bombardearam o cargueiro Altalena ao largo de Tel-Aviv. A embarcação transportava armas e soldados do Irgun, uma organização paramilitar sionista que se notabilizara pelo recurso ao terrorismo. Dias atrás, sob ordens do governo de Benjamin Netanyahu, comandos israelenses abordaram o navio turco Mavi Marmara, matando nove ativistas de uma flotilha que pretendia desafiar o bloqueio imposto à Faixa de Gaza. O Altalena ardeu para simbolizar a adesão do Estado judeu à lei das nações. A invasão do Mavi Marmara simboliza a aversão de Israel à lei das nações.
A flotilha atacada encontrava-se em águas internacionais, ao largo da costa de Gaza. Sob qualquer ângulo de análise, a ação israelense equivale a um ato de pirataria. A ordem de abordagem e o método utilizado provocaram um previsível desfecho trágico. A ação municiou o inimigo Irã, arruinou as relações com a aliada Turquia, decepcionou os países europeus e criou obstáculos suplementares para a política de Barack Obama. Na imprensa de Israel pipocaram acusações de incompetência do governo. Mais realista é concluir que Netanyahu agiu deliberadamente com a intenção de enviar mensagens a dois destinatários. O primeiro-ministro alertava os ativistas sobre a sorte reservada aos que tentarem furar o bloqueio e explicava a Washington que Israel não negociará a sério com os palestinos sem a prévia anulação política do Hamas.
A narrativa oficial do episódio articulou-se em torno do álibi empregado incessantemente para sabotar as negociações de paz. "Nossos soldados encontraram um grupo radical que apoiou grupos terroristas internacionais e hoje apoia o grupo terrorista Hamas", afirmou Netanyahu. "Era um navio de ódio. Não era uma frota de paz, era uma frota de apoiadores do terror."
Os ativistas, de fato, vestiram uma iniciativa política com a fantasia útil da ajuda humanitária. Da flotilha, realmente, participavam indivíduos tão radicais quanto alguns ministros do governo israelense. As opiniões políticas deles, contudo, não são justificativa para matá-los. E crismá-los como filoterroristas apenas evidencia a profunda degeneração da linguagem empregada por Israel. O Hamas venceu as últimas eleições gerais palestinas. Seriam os palestinos uma nação filoterrorista?
A Al-Qaeda representa o terror em estado puro. O Hamas, nas palavras precisas do escritor israelense Amós Oz, "não é apenas uma organização terrorista", mas "uma ideia", ainda que "uma ideia desesperada e fanática" - como foi, aliás, no seu tempo, o Irgun. A organização fundamentalista islâmica tornou-se o leito por onde correm as águas de uma vertente do nacionalismo palestino. Quando Israel borra as distinções entre Al-Qaeda e Hamas, não está cometendo um erro acadêmico de avaliação, mas inscrevendo em pedra o princípio legitimador de uma estratégia de rejeição da paz. A difusão ilimitada do rótulo de "terrorista" a todos os que, em qualquer nível, cooperam com o Hamas funciona como passaporte para a violação sistemática das normas internacionais.
Os ativistas do Mavi Marmara, entre os quais se contavam inúmeros fanáticos antissemitas, tinham como alvo o bloqueio israelense à Faixa de Gaza. O bloqueio representa uma violação direta, até hoje impune, da Convenção de Genebra, que estabelece os direitos das populações civis em territórios ocupados. É um crime de guerra, nada menos que isso. A alegação de Netanyahu de que a medida se destina a evitar a criação de "um porto iraniano em Gaza" colide com o discurso oficial israelense dos últimos anos: desde 2007 Israel proclama sua decisão de asfixiar a Faixa de Gaza até a dissolução da administração do Hamas. Previsivelmente, cada ato do Estado judeu na direção dessa meta, inclusive a sangrenta operação militar deflagrada em dezembro de 2008 em Gaza, reforça a auréola de martírio e resistência que circunda a organização fundamentalista.
Israel precisa reconhecer que "não estamos sós nesta terra", escreveu Amós Oz. A constatação emergiu na hora da assinatura dos Acordos de Oslo de 1993, mas foi logo esquecida, sob o impacto da radicalização interna em Israel e de ciclos de atentados terroristas palestinos. O governo de Netanyahu é o fruto maduro dessa trágica amnésia, cujas raízes estão fincadas nas camadas profundas do sionismo. O nacionalismo judaico original enxergava na Palestina uma "terra sem povo" prometida a um "povo sem terra". Hoje os israelenses se enxergam como uma nação sitiada por terroristas e reivindicam para si mesmos uma cláusula de exceção nas normas que regulam as obrigações das potências ocupantes.
No belo Judaísmo para Todos, lançado há pouco, o sociólogo Bernardo Sorj diagnostica que a ocupação dos territórios palestinos ricocheteia sobre a sociedade israelense, provocando "deterioração moral" e "fragilização da democracia". Um sintoma dessa crise de valores se encontra na flacidez da crítica doméstica aos atos do atual governo, formado por um núcleo de ultranacionalistas intransigentes e recoberto pelo manto enganoso da coalizão com os trabalhistas. Tudo se passa como se os israelenses estivessem sozinhos não apenas na Palestina, mas no mundo.
Ben-Gurion bombardeou o Altalena para afirmar, na hora do batismo do Estado judeu, que Israel não seria um prolongamento do Irgun. A antiga organização terrorista está na raiz do Likud, o partido de Netanyahu. O ataque violento ao Mavi Marmara parece indicar que os líderes atuais de Israel não se conformaram com o destino do navio de seus predecessores. É como se dissessem que a História deve ser reescrita - e que, agora, os homens e as armas do Altalena já podem desembarcar em Tel-Aviv.
O Estado de S. Paulo - 10/06/2010
Dois navios, separados por mais de seis décadas, iluminam o dilema que atormenta Israel. No dia 22 de junho de 1948, por ordem de David Ben-Gurion, chefe do governo provisório de Israel, as Forças Armadas do novo Estado bombardearam o cargueiro Altalena ao largo de Tel-Aviv. A embarcação transportava armas e soldados do Irgun, uma organização paramilitar sionista que se notabilizara pelo recurso ao terrorismo. Dias atrás, sob ordens do governo de Benjamin Netanyahu, comandos israelenses abordaram o navio turco Mavi Marmara, matando nove ativistas de uma flotilha que pretendia desafiar o bloqueio imposto à Faixa de Gaza. O Altalena ardeu para simbolizar a adesão do Estado judeu à lei das nações. A invasão do Mavi Marmara simboliza a aversão de Israel à lei das nações.
A flotilha atacada encontrava-se em águas internacionais, ao largo da costa de Gaza. Sob qualquer ângulo de análise, a ação israelense equivale a um ato de pirataria. A ordem de abordagem e o método utilizado provocaram um previsível desfecho trágico. A ação municiou o inimigo Irã, arruinou as relações com a aliada Turquia, decepcionou os países europeus e criou obstáculos suplementares para a política de Barack Obama. Na imprensa de Israel pipocaram acusações de incompetência do governo. Mais realista é concluir que Netanyahu agiu deliberadamente com a intenção de enviar mensagens a dois destinatários. O primeiro-ministro alertava os ativistas sobre a sorte reservada aos que tentarem furar o bloqueio e explicava a Washington que Israel não negociará a sério com os palestinos sem a prévia anulação política do Hamas.
A narrativa oficial do episódio articulou-se em torno do álibi empregado incessantemente para sabotar as negociações de paz. "Nossos soldados encontraram um grupo radical que apoiou grupos terroristas internacionais e hoje apoia o grupo terrorista Hamas", afirmou Netanyahu. "Era um navio de ódio. Não era uma frota de paz, era uma frota de apoiadores do terror."
Os ativistas, de fato, vestiram uma iniciativa política com a fantasia útil da ajuda humanitária. Da flotilha, realmente, participavam indivíduos tão radicais quanto alguns ministros do governo israelense. As opiniões políticas deles, contudo, não são justificativa para matá-los. E crismá-los como filoterroristas apenas evidencia a profunda degeneração da linguagem empregada por Israel. O Hamas venceu as últimas eleições gerais palestinas. Seriam os palestinos uma nação filoterrorista?
A Al-Qaeda representa o terror em estado puro. O Hamas, nas palavras precisas do escritor israelense Amós Oz, "não é apenas uma organização terrorista", mas "uma ideia", ainda que "uma ideia desesperada e fanática" - como foi, aliás, no seu tempo, o Irgun. A organização fundamentalista islâmica tornou-se o leito por onde correm as águas de uma vertente do nacionalismo palestino. Quando Israel borra as distinções entre Al-Qaeda e Hamas, não está cometendo um erro acadêmico de avaliação, mas inscrevendo em pedra o princípio legitimador de uma estratégia de rejeição da paz. A difusão ilimitada do rótulo de "terrorista" a todos os que, em qualquer nível, cooperam com o Hamas funciona como passaporte para a violação sistemática das normas internacionais.
Os ativistas do Mavi Marmara, entre os quais se contavam inúmeros fanáticos antissemitas, tinham como alvo o bloqueio israelense à Faixa de Gaza. O bloqueio representa uma violação direta, até hoje impune, da Convenção de Genebra, que estabelece os direitos das populações civis em territórios ocupados. É um crime de guerra, nada menos que isso. A alegação de Netanyahu de que a medida se destina a evitar a criação de "um porto iraniano em Gaza" colide com o discurso oficial israelense dos últimos anos: desde 2007 Israel proclama sua decisão de asfixiar a Faixa de Gaza até a dissolução da administração do Hamas. Previsivelmente, cada ato do Estado judeu na direção dessa meta, inclusive a sangrenta operação militar deflagrada em dezembro de 2008 em Gaza, reforça a auréola de martírio e resistência que circunda a organização fundamentalista.
Israel precisa reconhecer que "não estamos sós nesta terra", escreveu Amós Oz. A constatação emergiu na hora da assinatura dos Acordos de Oslo de 1993, mas foi logo esquecida, sob o impacto da radicalização interna em Israel e de ciclos de atentados terroristas palestinos. O governo de Netanyahu é o fruto maduro dessa trágica amnésia, cujas raízes estão fincadas nas camadas profundas do sionismo. O nacionalismo judaico original enxergava na Palestina uma "terra sem povo" prometida a um "povo sem terra". Hoje os israelenses se enxergam como uma nação sitiada por terroristas e reivindicam para si mesmos uma cláusula de exceção nas normas que regulam as obrigações das potências ocupantes.
No belo Judaísmo para Todos, lançado há pouco, o sociólogo Bernardo Sorj diagnostica que a ocupação dos territórios palestinos ricocheteia sobre a sociedade israelense, provocando "deterioração moral" e "fragilização da democracia". Um sintoma dessa crise de valores se encontra na flacidez da crítica doméstica aos atos do atual governo, formado por um núcleo de ultranacionalistas intransigentes e recoberto pelo manto enganoso da coalizão com os trabalhistas. Tudo se passa como se os israelenses estivessem sozinhos não apenas na Palestina, mas no mundo.
Ben-Gurion bombardeou o Altalena para afirmar, na hora do batismo do Estado judeu, que Israel não seria um prolongamento do Irgun. A antiga organização terrorista está na raiz do Likud, o partido de Netanyahu. O ataque violento ao Mavi Marmara parece indicar que os líderes atuais de Israel não se conformaram com o destino do navio de seus predecessores. É como se dissessem que a História deve ser reescrita - e que, agora, os homens e as armas do Altalena já podem desembarcar em Tel-Aviv.
JOÃO UBALDO RIBEIRO A MISTERIOSA SABEDORIA ORIENTAL
O ESTADO DE SÃO PAULO - 06/06/10
Por não saber bem do que se trata, já que existe uma infinidade de culturas e subculturas muito diferentes entre si, mas que podem ser chamadas de orientais, sempre procuro evitar contatos mais aprofundados com a Misteriosa Sabedoria Oriental, particularmente em certas circunstâncias como, por exemplo, nas conferências que alguém sempre faz, quando se vai a um restaurante japonês. De modo geral, explica-se que a Misteriosa Sabedoria Oriental chegou à conclusão de que peixe cru é mais sadio por isso, por aquilo e por aquilo mais. Na verdade, a sabedoria oriental envolvida nisso não tem nada de misteriosa. Os japoneses inventaram maneiras atraentes de comer peixe, legumes e algas crus porque moravam e moram num arquipélago sem combustível, onde até lenha sempre foi escassa. Aí, claro, o pessoal aprendeu a comer cru e elogiar, é natural e compreensível. (Sei que tem gente que encara essa afirmação como sacrílega; cartas indignadas para o editor, por caridade.)
O setor indiano dessa grande sabedoria ? que também é variadíssimo, mas os aficionados esquecem isto ? nunca cessou de fornecer farto material, sempre superior ao que temos por aqui. Lembro um amigo maledicente que alega incapacidade para discernir o que há de superior em viver de uma dieta constituída de bosta de vaca guisada e salada de manga verde, sentado numa cadeira de pregos, na companhia de duas cobras bailarinas. Maledicência, claro, para não falar na exploração de estereótipos sem fundamento na realidade. Mas eram mais ou menos esses os ideais de algumas pessoas fascinadas pela versão indiana da Misteriosa Sabedoria Oriental com quem já conversei.
Agora, porém, creio que devo dar a mão à palmatória. A última novidade da Índia está tendo merecido destaque no noticiário. Trata-se, como vocês devem ter visto nos jornais ou na televisão, de um senhor de 83 anos que afirma estar sem comer ou beber nada há mais de 70. Os médicos que o estudam não têm elementos para contestá-lo e com certeza já deve estar havendo reuniões preliminares de pelo menos uns três grupos de interessados, para montar no Brasil centros destinados a aplicar as descobertas recém-divulgadas. Tenho até uma sugestão para o nome de uma das cadeias de jejum público que deverão surgir. Tiro o nome de "fast food". Como "fast", além de rápido, também quer dizer "jejum" em inglês, sugiro que a primeira cadeia se chame "Fast Fast" ? quero somente um porcentual modesto do faturamento. O mercado é amplo e, durante os quatro meses que durar a moda, imagino que teremos botecos transformados em salões de jejum, onde os iniciados poderão não comer nada em ambientes sofisticados e propícios à meditação, assim como não beber nada sentados a mesas em que apenas a conta será material. Engana-se quem duvida, bobeia quem não investir.
Em Itaparica, contudo, a novidade não fez muito sucesso. Na habitual discussão do Bar de Espanha, ela até foi recebida com acentuado ceticismo da parte dos mais velhos. Ainda persistem recordações dos tempos em que havia pequenos circos e alguns deles visitavam Itaparica. É dessa época a controvertida figura de Rama Shanut, o faquir de um circo que passou uma temporada na ilha. (O faquir não era a principal atração do circo. A principal atração era a rumbeira Chiquita Salguero, em cuja homenagem abro estes parênteses, na verdade uma sergipaninha muito simpática chamada Pureza, a cuja lembrança vários velhos corações ilhéus palpitam.) Rama Shanut não deitava em pregos, mas ficava sem comer, numa gaiola com quatro ou cinco jiboiazinhas. Sob a alcunha popular de Charuto, era bastante festejado, mas foi obrigado a retirar-se da ilha com alguma urgência, quando se constatou que, apesar de cobrar quarenta centavos por cabeça a quem queria vê-lo jejuar, ele engordou seis quilos, depois de três meses de inanição.
Além disso, a fome nunca foi bem um problema aqui na ilha, porque sempre se pode dar um jeito de catar a proteína nos mangues ou nos bancos de areia expostos pela vazante. E há certos refinamentos, inspirados, como os da sabedoria japonesa, pela aspereza das condições vigentes. Assim, muitos dos que anseiam por um lanchinho ou café, mas no momento não dispõem de recursos, recorrem à jacuba (também denominada maria lígia, nunca descobri por quê). Para fazer jacuba, prepara-se um "café" de chicória seca, mistura-se com um pedaço de rapadura para adoçar, acrescenta-se farinha, mexe-se bem e bebe-se rápido, para não dar tempo de a farinha se depositar no fundo da caneca. É a extraordinária criatividade do povo brasileiro, imagino eu.
Além disso, tivemos em nossa história exemplos como o do finado Nelsinho do Alto (nome mudado porque os parentes podem não gostar de vê-lo citado), que dedicou a vida, como ele próprio dizia, a comer de tudo um pouco, pelo menos uma vez. Há grandes discussões sobre o que ele efetivamente comeu em toda a sua trajetória, mas é certo que comeu diversos urubus. Não gostava muito, até porque o tempo de cozimento era muito longo, mas comia, creio que por uma questão de princípio. Não duvido que alguns seguidores seus ainda mantenham discretamente a tradição.
Enfim, nada de realmente novo nessa história toda, talvez apenas a reação de Zecamunista. Ao saber da novidade, ele de início não disse nada, mas depois apareceu com o anúncio de que ia entrar em contato com o indiano, a fim de disseminar sua técnica entre nossos conterrâneos e futuramente tornar a ilha um polo para quem não quiser mais comer, notadamente as mulheres preocupadas com suas silhuetas.
- Mas, Zeca, quer dizer que o pessoal aqui vai passar sem comer nada?
- É, mas sem comer ninguém nunca mais.
Por não saber bem do que se trata, já que existe uma infinidade de culturas e subculturas muito diferentes entre si, mas que podem ser chamadas de orientais, sempre procuro evitar contatos mais aprofundados com a Misteriosa Sabedoria Oriental, particularmente em certas circunstâncias como, por exemplo, nas conferências que alguém sempre faz, quando se vai a um restaurante japonês. De modo geral, explica-se que a Misteriosa Sabedoria Oriental chegou à conclusão de que peixe cru é mais sadio por isso, por aquilo e por aquilo mais. Na verdade, a sabedoria oriental envolvida nisso não tem nada de misteriosa. Os japoneses inventaram maneiras atraentes de comer peixe, legumes e algas crus porque moravam e moram num arquipélago sem combustível, onde até lenha sempre foi escassa. Aí, claro, o pessoal aprendeu a comer cru e elogiar, é natural e compreensível. (Sei que tem gente que encara essa afirmação como sacrílega; cartas indignadas para o editor, por caridade.)
O setor indiano dessa grande sabedoria ? que também é variadíssimo, mas os aficionados esquecem isto ? nunca cessou de fornecer farto material, sempre superior ao que temos por aqui. Lembro um amigo maledicente que alega incapacidade para discernir o que há de superior em viver de uma dieta constituída de bosta de vaca guisada e salada de manga verde, sentado numa cadeira de pregos, na companhia de duas cobras bailarinas. Maledicência, claro, para não falar na exploração de estereótipos sem fundamento na realidade. Mas eram mais ou menos esses os ideais de algumas pessoas fascinadas pela versão indiana da Misteriosa Sabedoria Oriental com quem já conversei.
Agora, porém, creio que devo dar a mão à palmatória. A última novidade da Índia está tendo merecido destaque no noticiário. Trata-se, como vocês devem ter visto nos jornais ou na televisão, de um senhor de 83 anos que afirma estar sem comer ou beber nada há mais de 70. Os médicos que o estudam não têm elementos para contestá-lo e com certeza já deve estar havendo reuniões preliminares de pelo menos uns três grupos de interessados, para montar no Brasil centros destinados a aplicar as descobertas recém-divulgadas. Tenho até uma sugestão para o nome de uma das cadeias de jejum público que deverão surgir. Tiro o nome de "fast food". Como "fast", além de rápido, também quer dizer "jejum" em inglês, sugiro que a primeira cadeia se chame "Fast Fast" ? quero somente um porcentual modesto do faturamento. O mercado é amplo e, durante os quatro meses que durar a moda, imagino que teremos botecos transformados em salões de jejum, onde os iniciados poderão não comer nada em ambientes sofisticados e propícios à meditação, assim como não beber nada sentados a mesas em que apenas a conta será material. Engana-se quem duvida, bobeia quem não investir.
Em Itaparica, contudo, a novidade não fez muito sucesso. Na habitual discussão do Bar de Espanha, ela até foi recebida com acentuado ceticismo da parte dos mais velhos. Ainda persistem recordações dos tempos em que havia pequenos circos e alguns deles visitavam Itaparica. É dessa época a controvertida figura de Rama Shanut, o faquir de um circo que passou uma temporada na ilha. (O faquir não era a principal atração do circo. A principal atração era a rumbeira Chiquita Salguero, em cuja homenagem abro estes parênteses, na verdade uma sergipaninha muito simpática chamada Pureza, a cuja lembrança vários velhos corações ilhéus palpitam.) Rama Shanut não deitava em pregos, mas ficava sem comer, numa gaiola com quatro ou cinco jiboiazinhas. Sob a alcunha popular de Charuto, era bastante festejado, mas foi obrigado a retirar-se da ilha com alguma urgência, quando se constatou que, apesar de cobrar quarenta centavos por cabeça a quem queria vê-lo jejuar, ele engordou seis quilos, depois de três meses de inanição.
Além disso, a fome nunca foi bem um problema aqui na ilha, porque sempre se pode dar um jeito de catar a proteína nos mangues ou nos bancos de areia expostos pela vazante. E há certos refinamentos, inspirados, como os da sabedoria japonesa, pela aspereza das condições vigentes. Assim, muitos dos que anseiam por um lanchinho ou café, mas no momento não dispõem de recursos, recorrem à jacuba (também denominada maria lígia, nunca descobri por quê). Para fazer jacuba, prepara-se um "café" de chicória seca, mistura-se com um pedaço de rapadura para adoçar, acrescenta-se farinha, mexe-se bem e bebe-se rápido, para não dar tempo de a farinha se depositar no fundo da caneca. É a extraordinária criatividade do povo brasileiro, imagino eu.
Além disso, tivemos em nossa história exemplos como o do finado Nelsinho do Alto (nome mudado porque os parentes podem não gostar de vê-lo citado), que dedicou a vida, como ele próprio dizia, a comer de tudo um pouco, pelo menos uma vez. Há grandes discussões sobre o que ele efetivamente comeu em toda a sua trajetória, mas é certo que comeu diversos urubus. Não gostava muito, até porque o tempo de cozimento era muito longo, mas comia, creio que por uma questão de princípio. Não duvido que alguns seguidores seus ainda mantenham discretamente a tradição.
Enfim, nada de realmente novo nessa história toda, talvez apenas a reação de Zecamunista. Ao saber da novidade, ele de início não disse nada, mas depois apareceu com o anúncio de que ia entrar em contato com o indiano, a fim de disseminar sua técnica entre nossos conterrâneos e futuramente tornar a ilha um polo para quem não quiser mais comer, notadamente as mulheres preocupadas com suas silhuetas.
- Mas, Zeca, quer dizer que o pessoal aqui vai passar sem comer nada?
- É, mas sem comer ninguém nunca mais.
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